As viagens de carnaval
“Na Avenida Rio Branco, onde o andar diário é rápido e interessado em chegar, encontrei pessoas caminhando sem os vincos de preocupação no rosto. Ninguém buscava um objetivo ou um alvo inadiável e importante, que nos faz esquecer o prazer da viagem. Ao contrário, nessa jornada carnavalesca, ninguém tinha objetivos marcados.” É assim que o antropólogo Roberto da Matta descreve, em Carnavais, Malandros e Heróis, as cenas do carnaval de rua carioca em 1970.
Quem viaja pela primeira vez a um destino de carnaval durante as festividades não é capaz de conhecer tão bem seus pontos turísticos. As ruas ficam lotadas – passear por São Luiz do Paraitinga fora do feriado em questão, por exemplo, é uma experiência completamente diferente. Alguns lugares estarão fechados, outros estarão dedicados à festa, caso da casa dos Bonecos Gigantes no Recife e do Museu do Samba, no Rio.
Ao reler Da Matta, percebi que se por um lado perde- mos certas atrações, por ou- tro ganhamos a chance de presenciar pontos turísticos e não turísticos ocupados da forma mais intensa e viva possível por moradores, suas tradições e costumes.
Lembrei das vezes que segui pela mesma Avenida Rio Branco atrás do desfile do Cacique de Ramos, numa verdadeira viagem dentro da viagem à cidade. De quando subi, desci e suei pelas ladeiras de Olinda, sem qualquer preocupação com o destino ou com o relógio, sentindo o mesmo prazer de quem viaja nas férias e consegue se divertir e se emocionar com o caminho.
Os dias de carnaval são, mais do que qualquer outro feriado, uma ruptura com a ordem social e econômica, com a realidade presente, com o tempo controlado da sociedade industrial. Por isso, é mais do que uma oportunidade para viajar, e não apenas para algum lugar. É chance de viajarmos também pela história, pela arte, pelas manifestações populares mesmo que não saiamos do nosso próprio bairro ou até de nosso sofá (os desfiles das escolas de samba na TV cumprem seu papel). A origem da festa popular que se aproxima está nos rituais religiosos e pagãos da Antiguidade, realizados para espantar maus espíritos e más colheitas. Gregos, egípcios e romanos festejavam seus deuses. Saturnais e bacanais compunham uma gama de festas libertárias repletas de significados. Na Idade Média, a Igreja tentou controlar esses ritos, concentrando-os nos (três) dias que antecedem a Quaresma. Extravasar os desejos na folia para depois rezar.
No Brasil, o que hoje é a nossa maior celebração popular chegou pelas mãos das elites, num modelo importado de Portugal, segundo a historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Ao menos o carnaval das alegorias e dos bailes de mascarados, que ocupavam salões da alta sociedade e teatros municipais desde o século 19.
Dois séculos antes, porém, outra forma de festejo já tomava as ruas centrais da Bahia, de São Paulo e do Rio de Janeiro. Também trazido de Portugal, o entrudo (na origem, bonecos de madeira e tecido medievais) era uma brincadeira das classes populares, que consistia em jogar farinha, água e outros líquidos em quem passasse. Por vezes visto pela elite como violento, o entrudo possuía versão familiar e nobre, e consta que até D. Pedro II se divertia.
O francês Jean-Baptiste Debret, um de meus viajantes favoritos, descreveu, em imagem e texto, o entrudo no seu Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, publicado em 1834. Na pintura, mulheres e homens negros, com seringas d’água e os típicos limões de cheiro, feitos de cera e onde se colocava água perfumada, contam a história do País que, a esta altura, já havia absorvido à brincadeira os batuques e rituais africanos.
Para uma viajante foliona, qual era, afinal, a melhor forma de conhecer o centro do Rio se não atrás de uma de suas agremiações mais tradicionais, os caciqueiros do bairro de Ramos? Espero voltar a Paraitinga para visitar cachoeiras, mas posso dizer que estive ao lado de sua figura mais ilustre, o Juca Teles. E sei que o Paço do Frevo, no Recife, só é completo mesmo quando as sombrinhas são erguidas pela multidão no carnaval.