O Estado de S. Paulo

A DAMA DOS PALCOS

Bibi Ferreira, que morreu na quarta, aos 96 anos, dizia que, mesmo após mais de 70 anos de carreira, ainda ficava nervosa antes de entrar no palco, mas confessava adorar os holofotes

- Maria Eugênia de Menezes ESPECIAL PARA O ESTADO

Cantora, diretora e atriz morreu aos 96, no Rio. Será sempre lembrada pelas grandes atuações, como em My Fair Lady.

Bibi Ferreira representa­va o próprio teatro brasileiro. Atriz, diretora, cantora, ela morreu na quarta, 13, aos 96 anos, em seu apartament­o, no Rio. Segundo seu produtor, Nilson Raman, Bibi se preparava para almoçar, por volta das 13h, quando sentiu falta de ar e decidiu se deitar. Em seguida, morreu. A enfermeira que acompanhav­a a atriz chamou a família e o óbito foi atestado por um médico chamado pela filha, Teresa Cristina.

Pelos dados oficiais, Bibi Ferreira tinha mais de 70 anos de carreira. Mas a atriz e diretora estava no teatro há muito mais tempo. Sua estreia ocorreu ainda aos 24 dias de vida – quando foi levada à cena para substituir uma boneca que havia sumido – e ela, desde então, esteve sob os holofotes. Dizia adorar as luzes. E, fosse cantando, fosse representa­ndo, havia sempre um próximo espetáculo nos planos de Bibi.

A carreira praticamen­te centenária não lhe tirou, contudo, o nervosismo de iniciante. “Sabe que ainda sinto uma angústia naqueles instantes antes de entrar em cena? Aquele lugar, depois que você sai do camarim, e ainda não está no palco. Aquele cantinho... É ali que sinto um terror”, relatou ao Estado, quando fez 90 anos.

Filha de Procópio Ferreira (1898-1979), ela carregava do pai o amor pela cena e o pendor para o sucesso – a família vivia da bilheteria de seus espetáculo­s e não podia se dar ao luxo de um fracasso. Mas, curiosamen­te, foi Bibi uma das primeiras a suplantar o modelo de atuação que Procópio representa­va. Tratava-se de um tempo em que o diretor não passava de mero ensaiador e o público estava interessad­o, unicamente, em ver o ator brilhar.

Bibi era filha da tradição (do teatro de comédia e do teatro de revista, onde trabalhara sua mãe), porém representa­nte da modernidad­e. Nos anos 1940, tudo começava a mudar. O Teatro Brasileiro de Comédia chegava com novas ideias: o ator precisava decorar os seus diálogos, haveria um encenador que decidiria a concepção das montagens, sofisticav­a-se o repertório. A jovem Bibi se alinhava a essa corrente. À sua presença arrebatado­ra, acrescia uma técnica rara para os padrões da época. Ainda menina, integrou o Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio e, em 1946, foi estudar na Royal Academy of Dramatic Arts de Londres. Ao voltar, surpreende­u a crítica com sua primeira direção em Divórcio (1947) e fez ainda mais sucesso com a encenação de A Herdeira, de Henry James (1952).

Na sala do apartament­o onde morava, no Rio, Bibi Ferreira (nascida Abigail Izquierdo Ferreira) guardava um retrato emoldurado do pai, Procópio. Mas não creditava apenas a ele as lições aprendidas. Era descendent­e de cantores líricos: “Minha avó já acordava cantando árias de ópera. Cantava o dia inteiro.” Bibi também cantava o tempo todo. E cantava sem perceber. Parecia que cada lembrança de sua vida era acompanhad­a por uma canção, que ela desfiava a melodia como se fosse parte da história a ser contada.

Foi no teatro musicado, aliás, que Bibi deixou sua maior contribuiç­ão. Será lembrada por suas grandes atuações no gênero, como em My Fair Lady (1964) e em O Homem de La Mancha (1972) – ambos com Paulo Autran. Outra parceria profícua ela estabelece­u com seu quarto e último marido, Paulo Pontes, que dirigiu o musical Brasileiro – Profissão Esperança, imenso sucesso.

Bibi Ferreira protagoniz­ou também Gota d’Água (1975). A peça escrita por Paulo Pontes e Chico Buarque deu à atriz a oportunida­de de viver uma personagem de coloração trágica. Talvez Joana tenha sido sua mais memorável interpreta­ção – ninguém nunca superou sua versão para aquelas canções e ela ainda sabia, 40 anos depois, seus diálogos de cor. Impossível esquecer sua imagem no palco, sob rústicos tamancos de solado de madeira e tiras de couro, vestida de negro, cabelos desgrenhad­os, movendo-se como um bicho acuado. “Ela vai do musical à tragédia grega, um fenômeno raro”, surpreende­u-se, na época, o diretor de Gota d’Água, Gianni Ratto.

O público aprovou sua nova faceta: Gota d’Água ficou dois anos em cartaz entre Rio e São Paulo. Só no primeiro ano, havia feito 200 mil espectador­es. Em 1983, ela voltou a brilhar em Piaf, homenagem à grande cantora francesa Edith Piaf. Sob direção de Flávio Rangel (1934-1988), Bibi não deixava mais dúvidas sobre seu talento dramático. Piaf ficou oito anos em cartaz, entre Rio, São Paulo e demais estados brasileiro­s.

Não satisfeita, Bibi impression­ou novamente no início dos anos 2000, no espetáculo Bibi vive Amália, em que homenageav­a a fadista portuguesa Amália Rodrigues. Fez ainda dois recitais, Bibi in Concert e Bibi in Concert Pop, acompanhad­a de orquestra e coral.

Bibi dizia que o segredo da saúde era a vida regrada. Não fumava, não bebia. Em cena, exibia um perfil conhecido: os óculos escuros, braços levantados, físico ligeiramen­te atarracado, a voz caracterís­tica. Mas, se a artista Bibi foi muito reconhecid­a, a mulher Abigail era familiar para poucos amigos fiéis, que conviveram com ela e sabiam de suas outras qualidades e manias.

Abigail era uma mulher boemia, que preferia a noite: geralmente acordava por volta das 15h, quando tomava um simples desjejum: café com leite, pão com manteiga. Não gostava de chocolate, mas isso não significav­a que tinha um apetite controlado. Pelo contrário – Bibi adorava comer feijoada de madrugada, quando não um suculento prato de coxinhas.

Suas preferênci­as alimentíci­as, aliás, fariam qualquer nutricioni­sta corar: Bibi adorava fast-food, era frequentad­ora assídua de lanchonete­s como McDonald’s (sua preferida), onde se regalava com uma de suas bebidas preferidas, Coca-Cola. Mas havia também a Bibi mais suave, aquela que gostava de tomar chá nos finais de tarde, principalm­ente no Shopping JK – ou, quando não era possível, no hall do hotel onde estivesse hospedada. Tudo era motivo para fazer o que mais gostava de fazer: conversar durante horas.

Bibi Ferreira era uma mulher pouco afeita a exercícios físicos. Sua preguiça, aliás, vinha da infância, quando era obrigada pela mãe a se movimentar. Já adulta e independen­te, gostava de ficar acomodada no sofá de sua casa, onde assistia durante horas e com imenso prazer a antigos programas de balé que tinha gravado em VHS ou DVD. Desculpava-se dizendo ter uma coluna encrencada, o que limitava seus movimentos. Em parte, era verdade – Bibi só se sentava em cadeiras ou poltronas que fossem previament­e preparadas com almofadas que a deixassem confortáve­l.

Como não dirigia, era sempre conduzida e, nesses momentos, não gostava de ir no banco de trás dos carros. “Isso é para esposas”, dizia, acomodando­se no banco da frente, onde, aliás, podia se apoiar na alça localizada acima do vidro do banco de passageiro, o popularmen­te conhecido como ‘pqp’, como ela adorava dizer.

Quando finalmente se apresentou no Lincoln Center, em Nova York, em comemoraçã­o aos seus 90 anos, a felicidade era pelo ponto alto atingido pela filha de Procópio. “Estou na América”, saltitou ela, tão logo desembarco­u no aeroporto.

Em sua última aparição pública, em 2018, Bibi viu-se homenagead­a em Bibi, uma Vida em Musical, espetáculo de um amigo querido, Tadeu Aguiar, com incrível atuação de Amanda Acosta. “Ela cantou as músicas, respondia quando alguém dizia ‘Bibi’ em cena e demonstrou estar emocionada”, lembra Aguiar.

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 ?? MABEL FERES/ESTADÃO - 25/8/1998 ?? Bibi. ‘Ela cantava o dia inteiro’, diz a neta Claudia
MABEL FERES/ESTADÃO - 25/8/1998 Bibi. ‘Ela cantava o dia inteiro’, diz a neta Claudia
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ARQUIVO/ESTADÃO
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MARCOS DE PAULA/ESTADÃO - 2/8/2011 Em 2011. Nathália Timberg, Bibi e Marília Pêra
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ACERVO PESSOAL Em 1974 e 1925. Grande Otelo, Bibi e Paulo Autran em ‘O Homem de La Mancha’ e com o pai, Procópio Ferreira, e a mãe (E), no Rio

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