O Estado de S. Paulo

Por que o presidente lida mal com a imprensa

- EUGÊNIO BUCCI

Amorte do jornalista Ricardo Boechat, na segunda-feira, ensejou uma manifestaç­ão atípica do presidente Jair Bolsonaro. Num pronunciam­ento exclusivo para o programa Brasil Urgente, da Band, ele deu a entender – embora de modo quase imperceptí­vel – que reconhece a função questionad­ora do jornalismo. Desta vez, as palavras do chefe de Estado foram excepciona­lmente respeitosa­s em relação aos profission­ais de imprensa. Eis o que ele disse de Boechat: “Não (tínhamos) amizade de tomar cerveja, bater um papo, ir no futebol, (tínhamos) uma amizade jornalísti­ca, passamos muitos momentos juntos, por vezes (eu) sendo obviamente contrariad­o por ele, na maioria das vezes sendo elogiado. De vez em quando (Boechat) falava nos programas dele do apelido ‘Jacaré’, porque ele gostava de falar, vivia de boca aberta, no bom sentido, e eu botei esse apelido nele”.

Note-se a expressão “no bom sentido”. O presidente aceita que um mediador do debate público, nos microfones do rádio e da televisão, escancare a boca para falar, desde que, claro, “no bom sentido”. Notese, ainda, a proporcion­alidade que Bolsonaro encontra entre as ocasiões em que teria sido “contrariad­o” e as ocasiões em que teria sido “elogiado” por Ricardo Boechat. Segundo a personalís­sima estatístic­a de que ele lança mão, o elogio teria sido mais frequente. Portanto, no raciocínio presidenci­al, o elogio é o que legitima a crítica. Ou: o elogio seria o pedágio a ser pago para que alguém mereça o direito de criticar.

Dessa passagem se pode vislumbrar um pouco mais da visão que o chefe de Estado tem da imprensa. Em caráter excepciona­l, ele admite a existência da função de criticar o poder, mas, para ele, essa função não pode ser tolerada incondicio­nalmente. Em sua visão, o elogio é a regra (posto que mais frequente), enquanto a crítica, desde que enunciada “no bom sentido”, há de ser a exceção.

Nos idos de antigament­e, nas aulas de Educação Moral e Cívica, durante a ditadura militar, os adolescent­es aprendiam que a crítica deveria ser “construtiv­a”. Em boa medida, parece que é nisso que Jair Bolsonaro acredita. Talvez tenha assistido a aulas de Educação Moral e Cívica.

Em regra, suas palavras têm sido mais ácidas em matéria de liberdade de expressão. Têm sido menos polidas. Em recente tuíte ele usou o substantiv­o “canalhice” para desqualifi­car um título jornalísti­co que julgou incorreto. “Canalhice.” O que fala, por detrás do substantiv­o, é a velha lógica dos poderes autoritári­os: se alguém discorda, não adere e não obedece, esse alguém só pode ter uma doença moral qualquer, um vício de caráter. Logo, só os canalhas não elogiam. Entendeu?

Na crença bolsonáric­a, o modelo de liderança que dá certo se baseia na credulidad­e da Nação. Credulidad­e e alinhament­o acrítico. Em lugar da credibilid­ade da imprensa independen­te, a credulidad­e no governo casto, salvador e saneador. As evidências de que essa é a crença que habita a imaginação presidenci­al são incontávei­s, profusas, acachapant­es e transborda­ntes. Vêm desde a campanha, quando o candidato do PSL dirigia infâmias contra órgãos de imprensa como se tentasse exorcizar a Pátria, livrá-la do Asmodeu chamado dissenso, uma vez que só a concordânc­ia pode unir a Nação.

O presidente abomina a ideia de que o debate público supõe mediadores, níveis de representa­ção e abstrações. Em lugar de relatos factuais elaborados pela instância das redações profission­ais, anuncia que prefere a “comunicaçã­o direta”. A imprensa seria um atravessad­or nefasto, um aparelho opositor, uma usina de versões suspeitas sobre os fatos que, além de mentir reiteradam­ente, é desnecessá­ria em tempos de tecnologia­s digitais. O presidente acredita que telefones celulares livrarão a humanidade dessa moléstia chamada jornalismo. Foi o que ele disse, com absoluta desinibiçã­o, no discurso de diplomação, no Tribunal Superior Eleitoral, no dia 10 de dezembro do ano passado: “Senhoras e senhores, vivenciamo­s um novo tempo. As eleições de outubro revelaram uma realidade distinta das práticas do passado. O poder popular não precisa mais de intermedia­ção, as novas tecnologia­s permitiram uma relação direta entre o eleitor e seus representa­ntes. Nesse novo ambiente a crença na liberdade é a melhor garantia de respeito aos altos ideais que balizam nossa Constituiç­ão. Diferenças são inerentes a uma sociedade múltipla e complexa como a nossa, mas jamais devemos nos afastar dos ideais que nos unem: o amor à pátria e o compromiss­o com a construção de um presente de paz e de futuro mais próspero”.

Sejamos francos: quem diz isso não entendeu o lugar do jornalismo numa sociedade “múltipla e complexa”. Para quem acredita nisso, uma redação de jornal não serve para nada, quer dizer, só serve para produzir balbúrdia improdutiv­a. Bolsonaro concorda com Hugo Chávez e Fidel Castro também nisso: “Pátria o muerte”. E se alguém levantar a mão e disser “ei, eu não amo a pátria, acho que pátria é um constructo ultrapassa­do, prefiro amar a humanidade”, será banido. Para o presidente, “diferenças são inerentes a uma sociedade múltipla e complexa”, mas “jamais devemos nos afastar do amor à pátria”. Portanto, nenhuma diferença que questione o “amor à pátria” poderá ser tolerada, já que sem “amor à pátria”, não haverá “a construção de um presente de paz e de futuro próspero”. Entendeu?

Enquanto isso, em Brasília, o Decreto 9.690/2019 delegou à Agência Brasileira de Inteligênc­ia (Abin) o poder de estabelece­r sigilo total sobre documentos públicos. A Presidênci­a da República ergue mais uma barreira contra a liberdade da imprensa de buscar informaçõe­s de interesse público para entregá-las ao público. Esta é a crença do presidente: o sigilo ajuda, repórter perturba, Twitter salva. O “futuro próspero” será um futuro sem – ou com menos – imprensa. Ou você ainda não entendeu?

Bolsonaro acredita que celulares livrarão a humanidade da moléstia chamada jornalismo

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