O Estado de S. Paulo

Em ‘A Mula’, a leveza crítica de um mestre

Filme de Clint Eastwood, que estreia hoje, fala da história real de floriculto­r falido que trabalha para o tráfico de drogas

- Luiz Zanin Oricchio

A Mula, novo opus de Clint Eastwood, de 88 anos, é surpreende­nte. Clint dirige o filme e interpreta o protagonis­ta Earl Stone, floriculto­r que vai à falência e se torna um nonagenári­o transporta­dor de drogas pelas estradas americanas.

Narrada em estilo clássico e sereno, o que perturba na história é a ambivalênc­ia moral do personagem. Earl, visto em dois tempos da trama, é descrito como alguém dedicado em tempo integral ao trabalho, descurando-se da família, mulher e filha. Mais tarde, o próprio Earl fará uma autocrític­a, afirmando para outros personagen­s que nada de mais importante existe que vida em família. A esse discurso, altamente convencion­al (não interessa se verdadeiro ou não), Clint contrapõe essa outra vertente da personagem – a de membro, ainda que secundário, de uma gangue de criminosos sanguinári­os.

Clint constrói esse personagem ambíguo à medida dos desencontr­os contemporâ­neos. Em sua aparente simplicida­de, A Mula abre-se para uma série de questões inquietant­es. A velha moral ainda se sustenta ou é apenas capa ideológica confortáve­l, porém desprovida de sentido? Como são vistos os negros, latinos e minorias nesse modelo mundial de democracia que são os Estados Unidos? Quais os reais objetivos políticos no combate às drogas, tão tenaz quanto ineficient­e? Que mundo as gerações atuais legarão aos seus filhos e netos?

São perguntas – sem respostas simples – que nos acompanham quando termina esse filme de perfil límpido, construído com uma noção de ritmo impecável, contido, sem derramamen­tos emocionais, um vinho seco em meio a tantas beberagens açucaradas servidas nos cinemas.

Em A Mula, Clint reencontra­se consigo mesmo após as derrapadas patrioteir­as de Sniper Americano e 15h7 para Paris. Mantém, ainda e sempre, sua crença em valores sólidos, como a dignidade, em especial a dos vencidos e fracassado­s, herança de John Ford e da ética mítica da conquista do Oeste. Mas esses valores parecem mais uma luz bruxuleant­e que um farol seguro a nos guiar em nossas incertezas.

Este homem, conservado­r a ponto de haver apoiado Trump, é, no entanto, capaz de detectar em modo crítico o mundo fluído (líquido, diria Zygmunt Bauman) que construímo­s. E o faz com extraordin­ária leveza, esse privilégio dos velhos mestres.

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WARNER BROS. PICTURES Clint. Até que ponto os valores antigos ainda têm peso?

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