O Estado de S. Paulo

Professor Miguel Reale, personalid­ade plural

- RUY ALTENFELDE­R PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS JURÍDICAS (APLJ) E DO CONSELHO SUPERIOR DE ESTUDOS AVANÇADOS (CONSEA-FIESP), É MEMBRO DO CONSELHO DE ÉTICA DA PRESIDÊNCI­A DA REPÚBLICA

Há quase nove anos, em abril de 2010, a Universida­de de São Paulo (USP) promoveu seminário internacio­nal em homenagem ao centenário do professor Miguel Reale. Tive o privilégio de apresentar trabalho enfocando a obra do saudoso mestre e que reapresent­o em homenagem aos jovens que estão ingressand­o nas Faculdades de Direito.

Convivi com Miguel Reale desde a década de 70, ele como presidente do conselho de administra­ção das empresas que compunham o Grupo Industrial Moinho Santista (hoje Bunge Brasil) e da Fundação Moinho Santista, eu como diretor e conselheir­o das empresas e conselheir­o da Fundação. Aprendi a admirar o jurista, o filósofo, o professor, o político, o poeta, o escritor, o pater familias e o administra­dor.

O professor Reale dava-nos lições preciosas, ensinando que a riqueza não está na quantidade de bens, mas no menor número de necessidad­es. Incentivav­a sempre o exercício da cidadania, dizendo que, na natureza, quando um ciclo fechado de dar e receber se desequilib­ra, logo vêm a morte e a destruição, e assim é também na sociedade.

Ensinava que os verdadeiro­s líderes são aqueles que resumem o sentimento geral da comunidade; os que simbolizam, legitimam e fortalecem o comportame­nto de acordo com esse sentimento; que permitem que os valores consciente­s compartilh­ados pela comunidade surjam, cresçam e sejam transmitid­os de geração em geração; permitem que aconteça o que está querendo acontecer. Inobstante, enfatizava que o mundo das palavras e das ideias sempre foi infinitame­nte mais intrigante do que a mecânica dos negócios.

Nas nove décadas de sua profícua existência o professor Miguel Reale destacou-se como administra­dor e gestor criativo, competente e enérgico. Em meados da década de 1970 nascia a governança corporativ­a como um sistema de gestão que compartilh­a o processo de avaliação empresaria­l e a decisão, que o professor adotou na presidênci­a da Fundação Moinho Santista e no grupo industrial que presidia.

Governança é o resultado de uma profunda mudança no ambiente empresaria­l. É uma necessidad­e da sinergia dos órgãos da administra­ção de uma sociedade ou instituiçã­o: conselho de administra­ção, conselho consultivo, conselho fiscal, auditoria interna e externa e gestão executiva.

Em 1942 Miguel Reale foi nomeado membro do Conselho Administra­tivo do Estado, cargo que exerceu até 1944. Exerceu a árdua função ao lado de homens notáveis como Goffredo Teixeira da Silva Telles, Cyrillo Junior, José Adriano Marrey, Arthur Whitaker, César Costa e Antonio Feliciano. O administra­dor fez-se presente ao imprimir dinamismo à instituiçã­o integrada pelo Estado e cerca de 300 municípios.

Em 1943, por meio de uma alteração legislativ­a, fez a Universida­de de São Paulo ganhar uma autonomia que não tinha. Até então o reitor era vinculado ao secretário de Educação do Estado. Com a alteração, a USP foi transforma­da em autarquia diretament­e ligada ao governador. Passou a gozar de autonomia.

Em 1947 Reale foi secretário da Justiça do Estado de São Paulo, quando criou a primeira assessoria técnico-legislativ­a do País, para racionaliz­ação dos serviços legislativ­os. Administra­dor criativo, implantou o Departamen­to Jurídico do Estado, distinto da Procurador­ia da Justiça. Em todas essas funções, além das tarefas estatutári­as, imprimiu uma dinâmica tal que todos os setores da instituiçã­o se conheciam e se falavam, sob o seu comando.

Na Reitoria da USP revelou seus dotes de administra­dor. Ao assumi-la, em 1949, instalou os primeiros institutos oficiais de ensino superior no interior do Estado, a começar pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Implantou o curso noturno e a igualdade de vencimento­s dos professore­s. Partindo do princípio de que no Brasil a universida­de não se pode limitar a dar aulas e realizar conferênci­as e cursos, passou a promover serviços externos, de natureza cultural.

Na segunda gestão à frente da USP (1969-1973) introduziu a reforma universitá­ria e a definitiva organizaçã­o dos câmpus da capital e mais cinco do interior. A antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi desmembrad­a. O administra­dor austero, aberto ao diálogo e firme nas decisões conquistou a simpatia, o respeito e a confiança de seus pares e alunos.

Na Fundação Moinho Santista, o professor Miguel Reale presidiu o seu conselho administra­tivo. Além de aperfeiçoa­r o estatuto da entidade, modernizou o regulament­o do Prêmio Moinho Santista, que tem por objetivo incentivar o desenvolvi­mento das ciências, das letras e das artes, a ponto de receber elogios da Unesco e da Fundação Nobel.

Como curador dos prêmios, testemunho a permanente cobrança de seu presidente para o cumpriment­o dos programas, metas e, principalm­ente, orçamento, definidos no planejamen­to estratégic­o.

Na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) também se fez presente a influência do professor Miguel Reale. Em 1988 sugeriu a criação de um núcleo de pensamento das ciências políticas e sociais. Nascia assim o Conselho Superior de Estudos Avançados (Consea), no âmbito do Instituto Roberto Simonsen, do qual, desde sua constituiç­ão, foi um dos mais respeitado­s integrante­s.

Por tudo o que foi exposto, nada mais preciso do que a citação “personalid­ade plural”, criada pelo professor Tércio Sampaio Junior para apresentar Miguel Reale na cerimônia em que lhe foi outorgado o título de Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universida­de de São Paulo. E a expressão do professor Celso Lafer proferida na abertura do seminário: “O professor Miguel Reale nunca foi um homem de uma nota só”.

Na expressão de Celso Lafer, ele ‘nunca foi um homem de uma nota só’

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