Os riscos do regime de capitalização
APEC da reforma previdenciária prevê a criação, por Lei Complementar, do regime de previdência por capitalização. O ministro Paulo Guedes tem se mostrado defensor intransigente do novo sistema. Em diversas ocasiões, mencionou que o Brasil deveria se inspirar no sucesso do modelo chileno.
Em tese, concordo com o ministro. O regime de repartição tende a transferir um ônus excessivamente pesado para as gerações futuras, na medida em que a população envelhece e cresce a relação entre beneficiários e a força de trabalho. Se não tiver suas regras de acesso aos benefícios frequentemente ajustadas, esse sistema tende a caminhar para a insolvência.
No entanto, é preciso tomar muito cuidado ao implantar o regime de capitalização. Longe de ser uma panaceia, nos países em que foi adotado gerou grandes problemas.
Tomemos o exemplo do Chile, que tanto seduz os técnicos do governo Bolsonaro. Quando implantado, em 1981, na ditadura Pinochet, gerou enormes expectativas positivas. Tudo indicava que o novo regime, além de resolver o problema de financiamento da Previdência, criaria expressivo volume de poupança que propiciaria o financiamento de investimentos produtivos. Quase 30 anos depois, a realidade é bem diversa.
Mesmo com a reforma promovida pela ex-presidente Bachelet, 79% das aposentadorias atuais estão com valor abaixo do salário mínimo (cerca de R$ 1.400). Em média, os chilenos que se aposentam recebem 38% do salário da ativa. O objetivo de formar poupança para o financiamento de investimentos também não se concretizou. As fortes regras prudenciais estabelecidas para as Administradoras dos Fundos de Pensão (AFP) fazem com que elas deem preferência a aplicações em ativos externos de baixo risco ou em títulos do Tesouro chileno. Muito pouco é carreado para investimentos produtivos.
Pelo menos dois erros crassos foram cometidos no sistema chileno. O primeiro foi a enorme superestimativa da rentabilidade dos fundos de aposentadoria, o que resultou no estabelecimento de uma contribuição de apenas 10% sobre os salários, sem qualquer aporte patronal. Na década de 80, o juro básico norte-americano (fed funds rate) foi de em média 6% ao ano, acima da inflação. Hoje é praticamente zero. Isso certamente influenciou muito a superestimativa dos retornos projetados na época.
O segundo erro foi a instituição da capitalização para todas as faixas de renda, sem proteção de renda mínima para os mais pobres (problema parcialmente corrigido com a reforma de 2008). A tendência internacional é de criar três pilares: um mínimo, de caráter assistencial; um segundo, destinado aos trabalhadores de renda baixa e média, que continuariam no regime de repartição, pois estes não podem se sujeitar aos riscos de mercado na formação de seu pecúlio; e um terceiro, para rendas mais altas, para o qual se aplicaria o regime de capitalização.
É exatamente neste ponto que a PEC da Previdência deixa a capitalização excessivamente aberta para definição na Lei Complementar, muito mais fácil de ser aprovada que uma
O ideal é que essa opção fosse restrita aos segurados de maior renda, digamos, acima de R$ 4 mil mensais
Emenda Constitucional. Em tese, qualquer segurado poderá ir para o novo regime, preservando-se apenas a garantia do piso de benefício igual a um salário mínimo. O ideal é que essa opção fosse restrita apenas aos segurados de maior renda, digamos, aos que ganham acima de R$ 4 mil mensais.
Tornar a capitalização muito ampla gera, ainda, um custo de transição insuportável, pelo tamanho do buraco atual e a tendência demográfica brasileira. Por exemplo, se todos os novos ingressantes na força de trabalho optarem pela capitalização, a perda de arrecadação para financiar os atuais beneficiários seria da ordem de R$ 370 bilhões nos próximos dez anos. Isso é mais da metade dos ganhos fiscais esperados pela proposta, após os ajustes a serem feitos no Congresso.
ECONOMISTA, DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA