O Estado de S. Paulo

Lupita, a pérola

A atriz Lupita Nyong’o reafirma seus poderes ao aparecer em dois papéis no terror psicológic­o ‘Nós’

- Reggie Ugwu NYT / AUSTIN, TEXAS TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Quando ela tinha cerca de 11 anos, os pais de Lupita Nyong’o levaram para casa uma fita cassete que mudou sua vida. Foi da música Regulate, dos integrante­s da dinastia do hip-hop da Costa Oeste, Warren G e Nate Dogg. Nyong'o e seus cinco irmãos, que moravam em um subúrbio de Nairobi sabiam apenas parcialmen­te a letra da música – uma calorosa narrativa de um assalto frustrado, recoberta por uma pitada de sexo grupal cerimonial. Mas a música era hipnótica e evocativa, sugerindo um cativante pedaço do universo. Nyong’o se lembra de ouvir a fita, rebobinand­o-a várias vezes até que soubesse todas as palavras de cor.

Das coisas aparenteme­nte fáceis, mas difíceis de imitar, que a estrela de 36 anos de Nós, o novo filme de terror psicológic­o de Jordan Peele, fez na frente de uma câmera, vale a pena dedicar um momento para analisar a execução do rap. Ela fez isso duas vezes, ambas em vídeos filmados no banco de trás de um carro e postados no Instagram: a primeira para comemorar seus três milhões de seguidores e a segunda com sua co-estrela de Pantera Negra Letitia Wright, na semana de estreia do filme.

Ninguém chamaria Nyong’o de o próximo Warren G, mas algo sobre assistir a seu rap perturba nosso contador interior. Aqui está uma pessoa cuja primeira aparição em um filme, como a inesquecív­el Patsey em 12 Anos de Escravidão (2013), fez dela a sétima mulher negra e primeira negra africana a conquistar um Oscar como atriz; uma pessoa cuja simetria facial semelhante a uma boneca e pele suave tenha trazido suas quatro aparições solo na capa da Vogue; uma pessoa que fala quatro idiomas e é graduada em Yale.

E essa mesma pessoa, usando óculos de sol e chamando a si mesma de encrenquei­ra, revela que ela também pode fazer rap, com níveis adequados de indiferenç­a e convicção, e enquanto permanece no ritmo. Há quem suspeite que ela seja a divina negociante do abandono do dever.

Nyong’o discutiu seu hobby com o hip-hop em uma tarde no início deste mês em Austin, onde tinha ido ao festival South by Southwest para revelar Nós em 22 de março. Como os vídeos do rap, sua incursão no terror representa tanto uma abstenção como uma crítica implícita do manual de Hollywood para as estrelas de seu pedigree. Embora tenha sido deliberada quanto a criar um espaço para si mesma em um setor que não foi construído para ela, habitar e defender esse espaço é outra questão. O desempenho de Nyong’o em Nós, já tendo recebido críticas extasiadas, é um alerta para quem quer que negue o que lhe é devido.

Nyong’o passou boa parte dos últimos dois anos se preparando para filmar e promover o filme Pantera Negra, da Marvel, no qual ela interpreto­u Nakia, uma espiã wakandana idealista e pela qual o herói se interessa. O sucesso mundial do filme pode transforma­r a atriz vencedora do Oscar em uma heroína de grande sucesso, uma combinação rara que Nós está em condições de afirmar.

Nesse filme, ela interpreta Adelaide, a matriarca da encantador­a família Wilson, e Red, sua cópia sanguinári­a. Peele escreveu os personagen­s com Nyong’o em mente, e os dois eram colaborado­res próximos na interpreta­ção do roteiro. Eles se encontrara­m pela primeira vez logo após Nyong’o ter terminado Pantera (durante a produção desse filme, a atriz e fã de terror ao longo da vida organizou uma viagem de campo para ver a surpresa de Peele de 2017, Corra!, e logo se deu bem).

“Ele estava realmente me convidando pelos meus pensamento­s e ideias”, disse ela. “Ele tem esse ponto central de uma ideia que é tão forte, e então ele continua somando e esclarecen­do suas intenções conforme avança. Quando ele me colocou no elenco do filme, eu me juntei a ele nesse processo.”

Em uma entrevista, Peele disse que estava grato por esse segundo par de olhos. “Desde o início ela fez perguntas sobre os personagen­s, perguntas sobre as quais eu não sabia a resposta – embora soubesse tudo sobre eles”, disse ele.

Na história do filme, tão cuidadosam­ente quanto pode ser descrito sem spoilers, Adelaide embarca em férias à beira-mar com seu marido (o colega de Pantera Negra, Winston Duke) e seus dois filhos. Torna-se cataclísmi­co quando outra família de origem misteriosa – suas imagens espelhadas, mas filtradas através de um pesadelo particular­mente medonho – aparece à sua porta. Peele semeou seu roteiro com instruções enigmática­s para o visual e a sensação do duplo diabólico de Adelaide. Uma dizia respeito ao movimento de Red, que Peele transmitiu com apenas duas palavras excepciona­lmente assustador­as: Barata Rainha.

Nós é apenas a quarta aparição de Nyong’o em um filme que não é de animação desde sua estreia e, como atriz principal, ela ainda está aprendendo como e onde quer se apresentar. Muitos em sua posição aceitariam tanto trabalho quanto suas programaçõ­es suportaria­m, temendo as leis da gravidade que podem trazer prodígios de Hollywood abruptamen­te de volta à Terra. Mas também aqui, Nyong’o desafiou as expectativ­as. Ela acredita que sua criativida­de é um recurso finito e não oferece isso facilmente. “Eu não sou criativa o tempo todo, simplesmen­te não sou”, disse ela. “Cada papel me esgota de alguma forma, e sei que faço meu melhor trabalho quando tenho tempo de permanecer inativa.” /

 ?? ROGER KISBY/THE NEW YORK TIMES ?? Lupitas. Acima, no Ironwood Hall, no Texas. Abaixo, como Adelaide em ‘Nós’.
ROGER KISBY/THE NEW YORK TIMES Lupitas. Acima, no Ironwood Hall, no Texas. Abaixo, como Adelaide em ‘Nós’.
 ?? CLAUDETTE BARIUS/UNIVERSAL PICTURES ??
CLAUDETTE BARIUS/UNIVERSAL PICTURES

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil