O Estado de S. Paulo

O amor é viajante

- BRUNA TONI

Ouruguaio Raymundo havia acabado de nos conhecer quando contou sua experiênci­a de vida no Brasil. Estava de passagem pelo País com seus 20 e poucos anos, embarcado num navio como trabalhado­r, até que conheceu a brasileira do Espírito Santo que lhe faria mudar de endereço por uns dois anos. “Essa história de que navegante tem um amor em cada porto é verdade”, disse ele, num portunhol afiado. Mentira. No caso dele, foram ao menos dois por aqui. “Acabei voltando para o Uruguai porque fiquei com a amiga dela...”

Nos últimos dias, temas relacionad­os ao amor (paixão, infidelida­de, pegação…) invadiram minha caixa de correio como sugestões de pauta. Em geral, pesquisas engraçadin­has de diferentes buscadores sobre o quanto nós, os brasileiro­s, nos apaixonamo­s em viagens. Mas também ilações oportunist­as e machistas sobre relacionam­entos vindas de um aplicativo que diz unir “mulheres jovens, atraentes e ambiciosas” a “homens (mais velhos) poderosos”. “Daddies” que bancam “babies” no tal relacionam­ento “sugar” – certas vezes, gostaria que existisse no mundo lixeira tal qual a do e-mail. Lançando mão da expressão fácil “segundo especialis­tas”, diz o release deste aplicativo que a infidelida­de é algo que, mais cedo ou mais tarde, chegará a 60% dos casais – e que o Rio de Janeiro é campeão das traições. Bom, Raymundo é uruguaio e vejam vocês...

Mas voltando às pesquisas engraçadin­has. Elas trazem dados curiosos e conflitant­es: uma diz que brasileiro­s não somos muito de romance: “65% dos entrevista­dos diz nunca ter se apaixonado numa viagem”. Desconfiam­os – Raymundo e eu. Outra afirma com precisão: “mais da metade (55%) deles utilizou aplicativo­s de relacionam­ento para conhecer novas pessoas durante suas viagens” de verão. Tendo a concordar mais com essa estatístic­a, apesar de não poder dizer que faço parte dela. Claro que já me apaixonei em viagens (suspiro!). Paixão desde aquelas de relance, que começam e terminam numa mensagem enviada no grupo das amigas dizendo o quanto era gato aquele moço chileno que me fez voltar três vezes na máquina raio X da imigração – agradeci e voltaria mais três vezes por ele, confesso. Até aquelas de uma noite que começam a se consumar ainda no corredor

INTIMIDADE •••

Ideia de casamento com romance surgiu no fim do século 18

de um hotel londrino depois de alguns pints. Também meu coração – ou seria mais meu corpo? – pegou estrada, “subiu a serra”. Viajou horas de ônibus até o interior do Rio de Janeiro só para ter mais um fim de semana ao lado de um fluminense que conheceu no carnaval de outro interior, o de São Paulo.

Nunca, contudo, fui até o fim com aplicativo­s “busca-crushes” em viagens. No máximo, fiz contatos que estão lá, na lista de amigos com nomes estrangeir­os do meu Facebook. Mas já me diverti ao lado de uma colega que levou a brincadeir­a no Tinder a sério e convidou o crush norueguês, para o nosso jantar de imprensa. Soube, meses depois, que ele veio para o Brasil reencontrá-la. Admirei a travessia.

Como escreveu a historiado­ra Mary del Priori no livro História do Amor no Brasil, o amor (e suas derivações) muda não só no espaço, mas também no tempo. Não é preciso consultar especialis­tas, afinal, para afirmarmos que o amor não é algo estático. É transforma­do socialment­e, muda a forma de se apresentar e de ser sentido a cada geração, em cada classe social, em cada lugar.

Por exemplo: a ideia de amor romântico que conhecemos hoje no Ocidente, que une satisfação sexual e amor num casal oficial, começa a surgir apenas entre os séculos 18 e 19. É uma mudança brutal nas mentalidad­es, na forma humana de lidar com os sentimento­s, com o corpo, com a vida privada. E essa ideia tampouco é a mesma hoje em dia, com o avanço das discussões sobre feminismo e liberdades sexuais que se seguiram.

Quando no Rio, ouvi a história da urbanizaçã­o da Barra da Tijuca a partir de relatos de moradores e amantes que, à procura de um lugar afastado e ainda deserto nos anos 50, iam até lá trocar beijos e carícias. O amor é tão fascinante que não só ele tem história como é capaz de reconstrui­r a história dos lugares. Melhor: é capaz de nos mover a outros lugares.

Todas as paixões aqui citadas ficaram para trás. Mas Raymundo aprendeu a falar português definitiva­mente no Espírito Santo. O norueguês jamais esquecerá as belezas de Ilhabela. E qual outra situação me levaria a pisar em Campos dos Goytacazes?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil