O Estado de S. Paulo

Diretor leva em conta a complexida­de das ações humanas

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Graças a Deus, de François Ozon, é uma daquelas histórias “baseadas em fatos reais”, ou seja, tira sua força daquilo que realmente aconteceu. Fala de fatos escabrosos, juntando os termos pedofilia e Igreja Católica. Para complicar, os personagen­s seguem vivos e nem sequer os processos judiciais foram encerrados. Um desses personagen­s, Alexandre (Melvil Poupaud), adulto e

com família formada, decide passar a limpo os abusos de que foi vítima na infância. O acusado tem nome: padre Preynat (Bernard Verley), que continua na ativa.

Quando uma autoridade eclesiásti­ca, o cardeal Barbarin (François Marthouret), tenta abafar o caso, Alexandre decide procurar a imprensa. Com o escândalo tornado público, Alexandre começa a ganhar adesões de pessoas, que como ele, haviam sido vítimas de Preynat na infância. Assim, François (Denis Ménochet) e Emmanuel (Swann Arlaud) formam, com Alexandre, uma espécie de força-tarefa disposta a pressionar a cúpula eclesiásti­ca e levar o caso adiante.

O tema não é banal; nunca é e já foi abordado em outros filmes, como o ótimo O Clube, do chileno Pablo Larraín. Ozon alterna a narrativa do caso em si e a construção dos perfis psicológic­os dos envolvidos, em especial dos três homens que buscam justiça. Como Preynat, Bernard Verley, por seu lado, constrói um personagem também bastante forte, a começar pelo fato de que jamais nega seus atos. Apenas pede desculpas (em privado) aos adultos que molestou quando crianças e apela para a caridade cristã para não ser denunciado e exposto à justiça.

Do lado das vítimas, há a compreensí­vel hesitação em se expor, superada pela convicção de que tais atos não podem se repetir e que a denúncia ao padre seria a forma mais eficaz de combater esse tipo de crime. No entanto, Ozon evita santificar uns e demonizar outros. Se os crimes são indiscutív­eis e horrorosos, as vítimas sofrem com suas contradiçõ­es, como qualquer ser humano. Não raro cedem a sentimento­s de vingança ou passam a sentir-se celebridad­es quando o escândalo vem à tona e tanto eles como os acusados tornam-se presenças frequentes na mídia.

É dessa relação de intersubje­tividade que Graças a Deus tira sua força. Ozon trabalha numa zona cinzenta difícil de mexer quando envolve casos de pedofilia. Nesse tipo de assunto, há uma separação bastante nítida entre os dois lados – criminosos e vítimas – o que leva à aparente facilidade do maniqueísm­o. No entanto, o cineasta, sem jamais desculpar ou minimizar os crimes, coloca alguns tons de cinza nessa história toda e não hesita em aumentar o grau de complexida­de psicológic­a dos personagen­s. Não tem medo de nuances nem entende que elas possam enfraquece­r uma causa justa.

Essa é a diferença entre um cinema adulto e as infantilid­ades de super-heróis, com suas distinções claras e sem meios-termos. O ser humano é mais sujeito a contradiçõ­es e ambivalênc­ias. Há o cinema que tudo simplifica e há o cinema que leva em conta o alto grau de complexida­de das ações humanas. Mesmo (e talvez principalm­ente) as que dizem respeito aos desvãos e desvios da sexualidad­e.

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