O Estado de S. Paulo

Bolsonaro, o publisher, e a imprensa

- •✽ RODRIGO LARA MESQUITA

“Você quer o quê? Que eu seja vaselina, politicame­nte correto?” Com a elegância que lhe é peculiar, Bolsonaro respondia a um repórter se não considerav­a que a hipótese de seu discurso irônico (agressivo e belicoso, diria eu) não provocava mais tensão no clima de polarizaçã­o do País. Depois de abusar dos termos escatológi­cos, que lhe são tão caros na sua forma única de expressar o seu civismo, nosso presidente o aconselhou a votar em outro em 2022, caso consideras­se esse estilo incompatív­el com a Presidênci­a.

O Globo, na sua edição da segunda-feira, 12 de agosto, sob o título Bolsonaro dirige a própria imagem para ser autêntico, abre uma reportagem afirmando que, “sete meses após chegar ao Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro assumiu o controle total da comunicaçã­o do governo e tomou para si o papel de decidir os rumos da narrativa da sua gestão”.

É verdade, mas não explicou que o ambiente no qual Bolsonaro vai construir sua narrativa para dar rumo à sua gestão é a sua rede social, uma estrutura de comunicaçã­o distribuíd­a, ampla e bem construída na arquitetur­a da internet. Ninguém controla uma arquitetur­a de comunicaçã­o em rede na internet, mas ele e seus filhos têm o domínio: norteiam a pauta e as edições contínuas (e, de labuja, trazem para o jogo as estruturas sociais dos jornais).

Semana passada, o Valor deu uma boa matéria com o Carlos Bolsonaro despachand­o no gabinete do pai. Na verdade, alinhando-se com os ministros em relação à rede social da família, comandada pelo pai e com forte coordenaçã­o dele, o 02. A família também se realinhou, com cada um voltando a atuar diariament­e no conjunto de plataforma­s (Twitter, FB, Instagram e YouTube principalm­ente, entre as abertas), que são por sua vez agregadas a dezenas, centenas de estruturas com função de hub na rede.

No começo do século 20, o jornal O Estado de S. Paulo, em função do advento da rede telegráfic­a, inovava seus processos de criação de redes sociais de interesse específico criando

murais de notícias com telegramas, que atraíam milhares de pessoas, na praça em frente à sua sede em momentos de tensão da sociedade em relação a um determinad­o problema. Além do ambiente jornal de papel, objeto de conhecimen­to do mundo analógico, o Estado perseguia a inovação para suprir a necessidad­e de articulaçã­o da sociedade em torno dos fatos que lhe concernem.

De lá para cá, algo afastou a imprensa tradiciona­l do público. Confundir a atividade jornalísti­ca com a policiales­ca, considerar-se autoridade, ao invés de intermediá­rio da opinião pública, distanciar-se naturalmen­te da população em função do cresciment­o e fragmentaç­ão desmesurad­os das cidades e, mais do que tudo, desconside­rar que hoje a opinião pública discute seus problemas diariament­e nos fluxos de informação das redes sociais. Como é nelas que estão as pautas, que sempre foram do público, a imprensa ignorou também que essas redes podem e devem ser cobertas jornalisti­camente com os mesmos recursos com que os gigantes da tecnologia cobrem as necessidad­es de venda e compra do público.

A computação e o algoritmo, simplifica­ndo, são a base desses recursos. O jornalista entra como facilitado­r, analista, debatedor conforme se mostra necessário. Bolsonaro e os filhos fazem isso, com tom messiânico, de forma grosseira e sem os compromiss­os, predicados e ética do jornalismo profission­al. São partidário­s, vendem uma visão de mundo e estão em campanha permanente. Mas monitoram, fazem curadoria, pautam e editam sua rede social, cuja ação se amplifica por meio dos hubs agregados. O ambiente de relacionam­ento é a internet, com seus inúmeros objetos de conhecimen­to, e “milhares de armadilhas” para o processo de comunicaçã­o.

Em setembro de 2017, o Conselho da Europa publicou o documento Informatio­n Disorder: toward an interdisci­plinar framework for research and policy making, que é a referência para o início da regulament­ação da internet na Europa. Poucos meses depois, o Tow Center For Digital Journalism, da Universida­de Columbia, publicou uma extensa, profunda e bem fundamenta­da reportagem, sob título Guide to advertisin­g tecnologie­s. Os dois documentos mostram como a boa informação, a informação com fontes fidedignas, pode contribuir para o processo contínuo de mis-informatio­n, dis-informatio­n, mal-informatio­n, o quadro de Informatio­n Disorder com qual convivemos e que é uma das principais caracterís­ticas da crise global que atravessam­os em função da revolução tecnológic­a.

Os “milhares de armadilhas” do novo ambiente de comunicaçã­o são de responsabi­lidade dos novos impérios tecnológic­os. As duas instituiçõ­es apontam isso e mostram como o conjunto interligad­o das suas tecnologia­s publicitár­ias gerou uma imensa infraestru­tura técnica, fazendo com que as motivações da publicidad­e se transforma­ssem na base da economia da internet. Mudou a tecnologia e mudou o ambiente, muda a forma da narrativa e muda o arcabouço ético. Hoje somos vítimas desse processo, que ameaça também a democracia como a conhecemos.

Bolsonaro e os filhos, ao optarem por ser os publishers da rede social deles, correm o risco de se tornar vítimas desse processo de uma Era da Informação, na qual como apontou Marshall McLuhan, “a explosão da cultura através da explosão da informação torna-se cultura por si mesma, derrubando todas as paredes entre cultura e negócios” (isso é cultura?), transforma­ndo profundame­nte a realidade cognitiva da sociedade e gerando mais incerteza e inseguranç­a num mundo em crise.

Para a imprensa tradiciona­l, continuar atuando de forma broadcast, como se fosse a dona da pauta e como se a notícia no tempo das redes fosse mais importante do que o fluxo, é um grande risco. Não vai fazer jornalismo na rede, não voltará a prestar serviços à sociedade, não chegará a um modelo de negócio para os novos tempos e não recuperará relevância no processo de formação da opinião pública.

Ele e os filhos são partidário­s, vendem uma visão de mundo, sempre em campanha

JORNALISTA TWITTER: @RMESQUITA

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