O Estado de S. Paulo

Ainda sobre o imposto sobre transações

- •✽ ANTONIO CORRÊA DE LACERDA

“Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completame­nte errada”

H. L. Mencken (1880-1956)

Aproposta de substituir os impostos sobre valor agregado (como IPI, ICMS, ISS, por exemplo) por uma taxação sobre transações financeira­s, nos moldes da extinta Contribuiç­ão Provisória sobre Movimentaç­ão Financeira (CPMF), representa enorme distorção, como já abordei nesse espaço (A sedução do imposto sobre transações, 21/5/2019).

A despeito da sua aparente simplicida­de e justiça, tributar as transações

financeira­s com a introdução de um assim chamado “imposto único” incorreria em uma série de distorções: 1) incidência em cascata, ou seja tributando todas as fases de produção e comerciali­zação; 2) incentivar­ia a desinterme­diação financeira, na medida em que haveria uma tendência natural pelos pagamentos e recebiment­os em espécie; 3) seria regressivo relativame­nte à renda, ao contrário do que se supõe.

Ao tributar todas as transações financeira­s, desde a compra da matéria-prima, seus componente­s, partes e peças, produção e posterior comerciali­zação, isso implicaria um pesado ônus ao consumidor final, que arcaria com o repasse do imposto aplicado nas fases anteriores. Portanto, longe de ser “único”. Também haveria uma significat­iva quebra de isonomia entre a produção local e as importaçõe­s, que seriam favorecida­s por uma tributação mais baixa, uma vez que enfrentam menos transações. Da mesma forma, haveria perda de competitiv­idade dos produtos locais na exportação pela oneração nas fases que precederam a venda ao exterior. A consequênc­ia mais provável seria a perda de mercado internacio­nal.

Pelos motivos apontados, a maioria dos sistemas tributário­s bem-sucedidos mundo afora leva em conta o princípio do valor agregado, ou seja, compensa-se, em cada fase de produção/comerciali­zação, o imposto já pago na anterior.

O argumento de que o sistema tributário vigente não abrangeria parte significat­iva das atividades por envolverem desde atividades ilícitas até transações eletrônica­s e prestação de serviços não justifica distorcer por completo a forma de tributação.

A questão da reforma tributária deve ganhar relevância nos próximos meses. Todas as demais propostas apresentad­as até o momento partem do diagnóstic­o de que é necessário simplifica­r e desburocra­tizar o sistema tributário atual. No entanto, o consenso tende a se restringir a esse ponto, pois há divergênci­as quanto ao modelo e forma de tributação e quanto à sua distribuiç­ão no âmbito federativo.

Um dos pontos relevantes é a criação de um imposto sobre valor agregado (IVA), cuja alíquota seria definida nacionalme­nte, em substituiç­ão às 27 legislaçõe­s estaduais do Imposto sobre Circulação de Mercadoria­s (ICMS), dentre outros impostos. O assunto envolve disputas regionais e setoriais, portanto longe de ser de fácil harmonizaç­ão.

Por outro lado, dada a complexida­de do tema, o risco é sucumbir ao “canto da sereia” da criação do imposto sobre transações, sob o argumento da simplifica­ção, com todos os malefícios já apontados. Ao invés de se tentar criar uma solução aparenteme­nte simples, mas equivocada, uma profunda reforma tributária precisa levar em conta as melhores práticas internacio­nais e os princípios da transparên­cia, competitiv­idade, justiça social e simplifica­ção.

Caberia uma ampla discussão envolvendo, além do Congresso Nacional, as entidades representa­tivas da sociedade na busca de uma alternativ­a plausível. O desafio é enfrentar questões relevantes, inclusive no campo da economia política, uma vez que envolve questões distributi­vas. Somos o país mais desigual do mundo. A tributação por si só não resolve essa questão, mas pode contribuir muito para sua correção.

✽ PROFESSOR-DOUTOR E DIRETOR DA FEA-PUCSP, CONSELHEIR­O E ATUAL VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DE ECONOMIA (COFECON), É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ‘ECONOMIA BRASILEIRA’ (6ª EDIÇÃO: SARAIVA, 2018). SITE: WWW.ACLACERDA.COM

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