O Estado de S. Paulo

Orelhas atiradas no meio da rua

- IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

Helga estranhou quando o homem que tomava um ristretto, curtíssimo, no The Little Coffee Shop, na Rua Lisboa, sussurrou em seu ouvidos:

– Pode me emprestar sua orelha?

Ela olhou com desdém para aquele indivíduo que lhe dizia coisas estranhas. Como emprestar a orelha a alguém? Mas tudo acontece ali, naquela portinhola minúscula do The Little Coffee Shop, as

pessoas mais comuns e mais diferentes são habitués.

O café fica em frente ao Gênova e a cem metros do Tammy Montagna, onde se come um delicadíss­imo omelete de gruyère com um suco orgânico. Esse pedacinho da Lisboa está ficando gourmet e chique, é preciso estar atento a ele.

– Como é? – insistiu o homem. Empresta ou não?

– O quê?

– Sua orelha?

– Que ideia mais doida. Nunca vi emprestar a orelha a alguém. Como faço?

– A orelha é rosqueada em nosso corpo. Basta desrosquea­r e me dar. – Como se fosse uma lâmpada? – Exato. Então sabe, já emprestou a alguém?

Helga estava gostando da história. As pessoas no dia a dia estão ficando chatas, sensaboron­as, sem loucuras, todo mundo anda anestesiad­o, só fala em política, lei da Previdênci­a, ter arma, matar bandido como lesma, ou seria como ratos? Não! Parece que disseram barata. Cursos de inglês fazem propaganda: fale como o filho do presidente e ganhe um cargo nos United States vendendo donuts na ONU. Nos filmes policiais, traduzem donuts como bolinhos. Ou talvez seja vender milho cozido na porta da Casa Branca. As pessoas só esperam que o presidente dê uma das suas destrambel­hadas, nunca se viu um homem sem a mínima noção de nada. A colaborado­ra da casa de Helga diz sem loção.

– Vai! Me empresta a sua orelha. – E fico sem ouvir?

– Por dois dias, só?

– E como vou ouvir sem orelha? Seria como andar sem pés. Aliás, sabe que se a gente cortar os dedos dos pés, fica sem poder andar, perdemos o equilíbrio?

– Para com isso, me empresta a orelha, quero ouvir uma palestra filosófica muito importante, disseram que o homem é magnífico, muda a vida da gente.

– Pois então, vou eu ouvir essa palestra, estou muito arrasada.

– Agora vejo que o Josué estava errado. Ele me disse que você me emprestari­a a orelha. – Qual Josué? O do sebo Acervo? – Esse mesmo, um baita cara! Vai me emprestar ou não?

– Claro que não, nem sei se vai devolver. Cadê sua orelha?

– Perdi, de vez.

– Então é melhor ficar assim. Vive bem quem não ouve nada, tem muita gente dizendo besteira. Melhor ficar surdo. Ficar na sua. Quer saber? Também não quero ouvir mais nada, senão, enlouqueço.

Arrancou as duas orelhas e jogou no meio da rua de paralelepí­pedos, toda irregular, sob o olhar assombrado do João Gianesi, das melhores almas do mundo que viu, horrorizad­o, um carro passar e esmagar, deixando as orelhas como dois bifes bem batidos, prontos para fritar ou assar na grelha. João entrou para dentro da casa dele, para encontrar sua Terezinha, que o esperava com um prato de jilós crocantes, pensando: Nada mais que outro dia normal em São Paulo.

Elas são rosqueadas em nosso corpo. Basta desrosquea­r e me dar. Como se fosse lâmpada

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