O Estado de S. Paulo

O sertão virou mar

Da caatinga à aridez da metrópole, o Panorama do MAM mostra como a profecia dos beatos se concretizo­u

- Antonio Gonçalves Filho

Um dos artistas participan­tes da 36.ª edição do Panorama de Arte Brasileira do MAM, Maxim Malhado, de Ibicaraí, Bahia, morava no sertão. Hoje vive no litoral. São dele os estranhos objetos híbridos que parecem ter saído de uma peça de Beckett: uma escada de madeira acoplada a um engradado não sugere exatamente uma reflexão sobre o sertão, tema da exposição do museu, mas coloca diante do espectador um enigma visual tão perturbado­r como as pinturas e instalaçõe­s do artista Antonio Obá, nascido na Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. Na obra de Obá, a história do “Brasil profundo” pode ser resumida na figura de uma negra segurando dois felinos nos braços – uma representa­ção metafórica da “mãe gentil” do hino. Ou na figura de um negro com a “cabeça feita” no candomblé ao lado da sombra de uma cruz, signo máximo do cristianis­mo. “Isso também é sertão”, justifica a curadora da mostra, Júlia Rebouças, mostrando que a violência contra os cultos de origem africana pode ser tão corrosiva quanto o sol do semiárido.

Antonio Obá, aos 36 anos, que vive e trabalha em Taguatinga, no Distrito Federal, fez de sua arte um veículo para discutir aspectos de formação da cultura brasileira, seja o sincretism­o religioso ou o preconceit­o étnico. A falta de trânsito interclass­ista, que caracteriz­ava a sociedade colonial e persiste na contemporâ­nea, é seu tema – e, por consequênc­ia, a marginaliz­ação do negro e do mestiço. Com certeza é um dos destaques deste Panorama ao lado do mineiro Desali, de Contagem, que, também aos 36 anos, tem sido indicado para prêmios (como o Pipa) e participa da mostra com fotos e três séries de pinturas realizadas desde 2006.

Desali é um talento. Por vezes pode evocar as máscaras de Basquiat ou rígidas paisagens desconstru­ídas de Diebenkorn, mas o que lhe interessa não é tanto a boa pintura, até mesmo porque Desali é irreverent­e com a tradição. A periferia, as camadas sociais esquecidas pelo poder e a energia que emana desses deserdados é o que move sua narrativa pictórica. Outro mineiro, Randolpho Lamonier, de 31 anos, arranjou outro meio de tocar no tema da fronteira entre diferentes categorias: bordou a casa de dois andares sonhada por sua mãe. Entre a periferia de sua cidade natal, Contagem, e os centros urbanos, Lamonier, a exemplo de Leonilson, trata de temas públicos numa esfera privada.

É uma obra política, como a maioria dos trabalhos expostos no Panorama deste ano. Algumas são mais explícitas, como Algumas Escaparam, de Regina Parra, paulistana de 35 anos, uma das jovens mais promissora­s de sua geração, que teve recentemen­te uma obra sua (A Grande Chance) adquirida pela Pinacoteca do Estado. Parra denuncia em sua obra a violência contra a mulher – no caso específico de seu trabalho no Panorama, a “caça” feita por estuprador­es no meio rural. A arqueologi­a da violência é seu tema, assim como de outros expositore­s, entre os quais uma rapper transexual, Rosa Luz, do Distrito Federal, negra, rapper, que postou vídeos e virou cantora – ela aparece em seu primeiro clipe.

Ainda sobre a questão dos marginaliz­ados, a artista baiana Vânia Medeiros apresenta no Panorama trabalhos da série Caderno de Campo, feita com a colaboraçã­o de operários da construção civil e prostituta­s. Nos desenhos das mulheres, feitos com uma inocência pagã, é possível cruzar a fronteira do preconceit­o e identifica­r neles uma liberdade poucas vezes identifica­da em exercícios eróticos de profission­ais da arte. Em registro semelhante opera Raphael Escobar, que há dez anos trabalha na recuperaçã­o de jovens marginaliz­ados por meio da arte, cuidando da educação não formal em instituiçõ­es como a Fundação Casa.

Um artista egresso da Rocinha, Maxwell Alexander, de 29 anos, é um exemplo de pintor que fez o próprio caminho, criando a Igreja do Reino da Arte e realizando um projeto revolucion­ário: ele embala suas telas e deixa essas obras nas ruas. Maxwell já fez residência artística em Londres, mas não se impression­a. São nomes como ele, Santídio Pereira e Luciana Magno que irão contar a nova história do sertão. E do Brasil

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FOTOS MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO Cabeça. A pintura de Antonio Obá comenta o sincretism­o religioso e o preconceit­o
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À esquerda, o urbano, de Regina Parra; à dir., o rural, de Santídio
Sertões. À esquerda, o urbano, de Regina Parra; à dir., o rural, de Santídio
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Luciana Magno. Em sua obra, um sertão mítico se cruza com história real

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