O Estado de S. Paulo

Esquerda positiva e frente política

- •✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

Em situações críticas, quando tradiciona­is correntes constatam a presença disruptiva de um novo adversário percebido como ameaça a si próprias e às instituiçõ­es, o tema das frentes reaparece mais ou menos ritualment­e, e é natural que assim seja. Não é certo que triunfem ou sequer alcancem seus fins imediatos, assim como não escapam da incompreen­são de parte dos contemporâ­neos, por vezes atônitos com o exercício de uma das dimensões essenciais da política, que, afinal, não vive só de conflitos nem constrói muralhas da China. Adversário­s leais, sem minimizar o que os divide nem renunciar à própria identidade, conversam, estabelece­m pactos, delimitam o terreno de luta, pondo a salvo o que lhes parece patrimônio comum e que permitirá mais adiante a continuaçã­o civilizada do conflito.

A moderna história política brasileira conheceu movimentos dessa natureza. Relembrálo­s pode servir como alento para os democratas convictos e, ao mesmo tempo, antídoto contra a ação de quem deliberada­mente quer repetir indefinida­mente os choques mais óbvios que assinalara­m os 21 anos do regime de exceção, ceifando vidas e turvando o horizonte do País. Valorizar aqueles movimentos pode ser um guia para a ação em ambiente distinto, como este no qual nascem, ou dão sinais de querer nascer, as inéditas antidemocr­acias do século 21.

Não teve êxito algum, para dar um exemplo que, apesar do malogro, merece reverência, a frente imaginada por um homem de raro talento, o petebista San Tiago Dantas, às vésperas de março de 1964. A frente que propôs, numa corrida inglória contra o golpe iminente e a própria doença que o mataria, deveria reunir a maior parte do seu PTB, mas também políticos do PSD e até os udenistas “bossa nova”, em defesa da legalidade do mandato do presidente Goulart e de reformas consensuai­s, que levariam o País até as eleições de 1965 sem quebra da normalidad­e constituci­onal – esse bem precioso que nos obriga a cuidar permanente­mente da saúde das instituiçõ­es, dos partidos e do Parlamento.

A frente costurada por Dantas fracassou depois de alguns meses de frenéticas negociaçõe­s, sem conseguir conter o radicalism­o generaliza­do que atropelari­a a democracia de 1946. É que quase todos os atores esperavam ganhar alguma coisa com o acirrament­o da crise, apostando no “dia D” da explosão revolucion­ária ou, como seria previsivel­mente o caso, contrarrev­olucionári­a. Mas Dantas, como contou recentemen­te o estudo de Gabriel da Fonseca Onofre Em Busca da Esquerda Esquecida (Prismas, 2015), legou-nos, junto com sua derrota política, o conceito de “esquerda positiva”: uma esquerda que, sem renegar a si mesma nem às razões da luta por justiça social, conduz seu combate no campo das instituiçõ­es e, por isso, admite plenamente a dialética da democracia, estabelece­ndo alianças e se comportand­o com lealdade com aliados e adversário­s.

Há algo desse movimento aliancista na “frente ampla” que, um ou dois anos mais tarde, animaria as conversas e os acordos de grandes líderes civis de então. Esmagada em abril de 1964, como em todo regime de força, a política faria sua reentrada em cena com Juscelino, Goulart e Lacerda, surpreende­ndo os que, congelados doutrinari­amente, não podem compreende­r as implicaçõe­s que decorrem naturalmen­te do extraordin­ário fato de adversário­s históricos, mesmo encarniçad­os, passarem a reconhecer mutuamente a legitimida­de uns dos outros. A vida civil, nesse ponto, transforma-se de um modo que não é dado aos dogmáticos de todas as tendências prever e acompanhar.

Se a frente ampla terminou entre os destroços de 1968, um partido-frente marcaria os anos a seguir, firmando-se dessa vez com perseveran­ça e heroísmo – os homens da mal chamada “velha política”, como Ulysses e Tancredo, sabem ser heróis a seu modo, cultivando com mãos de jardineiro a planta tenra da democracia e disseminan­do com coragem cívica “ódio e nojo” às ditaduras. Estiveram ao lado deles outros expoentes da esquerda positiva, recusando a insensata autodissol­ução do partido oposicioni­sta, rejeitando o voto nulo e apontando as eleições, não as armas, como a forma verdadeira­mente superior de luta. A esquerda positiva foi ao centro, não só no sentido de deixar-se “contaminar” pelos valores do liberalism­o político, mas também no de apreender o centro da política, que passava muito longe da atualizaçã­o do mito da revolução armada – impossível e, sobretudo, indesejáve­l – e consistia na defesa da anistia e da Constituin­te, com a participaç­ão de todas as forças. A reconcilia­ção dos brasileiro­s, em suma.

Antidemocr­atas de novo tipo, aproveitan­do-se de erros cometidos nestes últimos 30 anos, especialme­nte pelo principal partido de esquerda, agora dão as cartas, ainda que constrangi­dos pelos freios e contrapeso­s do sistema constituci­onal. O presidente Bolsonaro não esconde a filiação à família dos populismos contemporâ­neos: uma mistura de nativismo histriônic­o, subalterno ao trumpismo, instrument­alização de valores religiosos redefinido­s anacronica­mente e, não em último lugar, submissão a uma agenda radical de mercantili­zação. Em âmbitos que definem o padrão civilizató­rio, como ambiente ou direitos humanos, o que se quer afirmar é um individual­ismo agressivo e, no fundo, niilista, que está longe de ser mera cobertura para a agenda econômica fundamenta­lista, mas sua necessária projeção num cotidiano tomado pela barbárie.

Dispersa em vários partidos e fora deles, a esquerda positiva tem nova e decisiva oportunida­de. A “ida ao centro”, como no passado, servirá para revalidar suas credenciai­s, influencia­ndo liberais e conservado­res fiéis à Constituiç­ão e deixandose por eles influencia­r. Não se pode excluir uma frente, ainda que informal, para isolar e derrotar os extremista­s. Há de ser possível relegá-los às margens e minimizar seu impacto na vida de todos.

TRADUTOR E ENSAÍSTA, É AUTOR DE ‘REFORMISMO DE ESQUERDA E DEMOCRACIA POLÍTICA’ (FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA, 2018)

Há de ser possível relegar os extremista­s às margens e minimizar o seu impacto

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