O Estado de S. Paulo

FERNÁNDEZ, A CRIA DOS KIRCHNERS SEM PERFIL PARA ‘POSTE’

Candidato à presidênci­a tem capacidade de negociar com as várias frentes políticas dissidente­s e já indicou que não será marionete de Cristina

- Luciana Rosa

Na quarta-feira, a sala 7 da Faculdade de Direito da Universida­de de Buenos Aires foi palco de uma aula de Teoria Geral do Delito lecionada pelo homem mais cotado para ser o próximo presidente da Argentina. A maioria obtida nas urnas nas eleições primárias do domingo passado não afastou o advogado Alberto Fernández de algumas de suas atividades cotidianas. Entre estas, estão dirigir o próprio carro da faculdade até seu escritório em San Telmo e levar para passear seu cachorro Dylan – o animal, cujo nome homenageia o cantor Bob Dylan, tem 61 mil seguidores no Instagram.

Fernández foi chefe de gabinete de Néstor e Cristina Kirchner entre 2003 e 2008, mas deixou o cargo por divergênci­as com a presidente. A partir daí, Fernández se transformo­u em um crítico ferrenho

do segundo mandato de Cristina. “Não vou me calar diante da má administra­ção da economia que levou a Argentina novamente a ter déficit fiscal”, declarou Fernández em uma entrevista na TV em 2012. No mesmo ano, disse a uma rádio argentina: “O que era perverso em outros tempos se transforma em valioso agora. Era perversa a nova reeleição de (Carlos) Menem e é boa a nova reeleição da Cristina. Por quê? Era perversa a corrupção menemista, mas não é perversa esta corrupção revolucion­ária”, provocou.

Ele dava sinais de seu perfil político, que, segundo os analistas argentinos, está longe de ser o de marionete de Cristina: “Eu estou disposto a debater qualquer coisa, o que não estou disposto é a obedecer porque eu faço política, não estou em um quartel. Sou muito condescend­ente, o que não sou é um estúpido”, exclamou Fernández em um popular programa de TV, também em 2012.

Em 2017, o deputado nacional, neto de desapareci­dos na ditadura militar e grande amigo dos Kirchners, Juan Cabandié, resolveu promover o reencontro entre Cristina e Fernández. A reconcilia­ção ocorreu no mesmo ano das eleições legislativ­as nas quais a aliança de Mauricio Macri, Cambiemos, obteve um êxito. Começou ali a Frente de Todos, coligação que hoje reúne a ala peronista mais conservado­ra com os kirchneris­tas mais radicais.

Quando em maio a Argentina ainda tentava entender a recém-anunciada fórmula Fernández-Cristina, a ex-presidente apontava uma qualidade do que poderá ser o próximo presidente: “O país não precisa de alguém como eu, que divido, mas alguém como você, que soma”, teria dito Cristina a Fernández em telefonema para convidá-lo a integrar sua fórmula. A ex-presidente responde a 12 processos na Justiça. Se for eleita vice, ela conquistar­á automatica­mente uma cadeira no Senado e manterá a imunidade parlamenta­r.

“Fiquei sabendo (da formação da chapa) minutos antes de entrar na prisão de Ezeiza para visitar o ex-vice-presidente Amado Boudou (vice de Cristina)”, lembra Juan Mutti, militante da juventude kirchneris­ta conhecida como La Cámpora. “Muitos companheir­os ficaram surpresos, a maioria queria que ela encabeçass­e a fórmula e outros diziam que ela tinha de sair de cena completame­nte. Para mim, foi uma jogada excelente para não polarizar Macri-Cristina!”, avalia.

Estilo. Torcedor do Argentino Juniors, Fernández faz uma campanha muito similar a sua personalid­ade. Sem grandes comitivas, aviões privados ou gurus de marketing, o advogado de 6o anos se vale mais de sua influência entre os políticos tradiciona­is do peronismo e do fato de ter sido homem de confiança de Néstor Kirchner.

No punho esquerdo, leva uma fitinha vermelha, das que os mais superstici­osos costumam amarrar no braço fazendo pedidos. Fã de Lula, em julho viajou até Curitiba para visitar o ex-presidente. Disse que a visita era uma forma de “chamar a atenção para a injustiça com relação à detenção dele”. Na biblioteca de seu escritório, há livros sobre o ex-presidente.

Ainda que Fernández seja considerad­o uma figura mais amável do que Cristina, não pode ser considerad­o um líder popular e carismátic­o. Algo que o tem aproximado do público é a relação que mantém com o filho único, Estanislao. O jovem de 24 anos possui quase 70 mil seguidores no Instagram, onde está identifica­do pelo pseudônimo Dyhzy e se reconhece como drag queen e cosplayer. Em entrevista a uma rádio argentina em junho, Fernández foi questionad­o sobre o tema, até então evitado pelos jornalista­s. Ele ressaltou o papel do filho na comunidade LGBTI. “Tenho orgulho do meu filho. Como não vou ter? Ele é militante dos direitos dessa comunidade. Ficaria preocupado se fosse um delinquent­e.”

Fernández filiou-se ao Partido Justiciali­sta em 1983. Sua primeira candidatur­a ocorreu em 1999 à vice-prefeitura de Buenos Aires. Perdeu. Em 2000, elegeuse legislador com o partido Nuevo Encuentro. Mas abandonou o cargo em 2003 para assumir como braço direito de Néstor. A capacidade de negociar e dialogar com várias frentes políticas dissidente­s talvez tenha sido o principal fator na decisão de Cristina de indicá-lo como candidato. “A grande estrategis­ta é ela”, afirma o analista político Rosendo Fraga. “Fernández é o conector efetivo do kirchneris­mo que atraiu e fez aceitável uma coalizão, pois representa uma figura moderada da qual o peronismo do interior do país aceita ser parte com uma aliança explícita ou por meio de uma cumplicida­de passiva”, diz o pesquisado­r e especialis­ta em comportame­nto eleitoral Patricio Tavalera.

“Acredito que Fernández não é um candidato poste, mas o candidato real, eleito por Cristina para ser o responsáve­l por uma gestão que será muito complicada. Além disso, deve-se a ele a unidade do peronismo”, disse Julio Burdman, pesquisado­r do Instituto Argentino de Sociologia Política.

Segundo Rosendo Fraga, “na Argentina, quando o peronismo se une, ganha” – em parte uma boa explicação para o sucesso obtido nas primárias há uma semana. A vantagem de 15 pontos sobre a coligação de Macri fez com que Fernández se transforma­sse “em uma figura aceitável para a liga de governador­es peronistas que tem uma malha de eleitores que não são parte do grupo de kirchneris­tas tradiciona­is. E a sua candidatur­a está regida por dirigentes políticos e governador­es que representa­m esse eleitor peronista tradiciona­l de direita”, explica Tavalera.

Resta saber até quando vai a trégua Fernández-Cristina. E, principalm­ente, se vai ser suficiente para superar os meses de recessão que o país tem pela frente, caso a dupla seja eleita.

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COLIGAÇÃO FRENTE DE TODOS
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REUTERS - 15/12/2005
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LUCIANA ROSA/ESTADÃO Cotidiano. Fernández em sala de aula (E); acima, sua biblioteca em San Telmo; abaixo, com Kirchner em 2005

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