O Estado de S. Paulo

A nova face da intolerânc­ia religiosa

No Rio de Janeiro, ligação de traficante­s com evangélico­s cria vertente inédita e aumenta ataques contra religiões de matizes africanas

- Roberta Jansen

Os registros de intolerânc­ia religiosa são comuns Brasil afora, mas no Rio têm uma caracterís­tica particular: passaram a envolver traficante­s e evangélico­s. Após ataques a terreiros de umbanda e candomblé na Baixada Fluminense, a polícia identifico­u o mandante e, na semana passada, prendeu oito traficante­s acusados de integrar seu grupo, o chamado Bonde de Jesus.

Segundo a polícia, o mandante é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, do Terceiro Comando Puro (TCP), um dos criadores do Bonde de Jesus, vertente inédita da intolerânc­ia religiosa no Estado. Estima-se que existam hoje 200 terreiros sob ameaça. Os casos são investigad­os pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerânc­ia (Decradi), criada em 2018.

Investigaç­ões apontam que a peculiar relação entre religiosos e criminosos aconteceu depois que a cúpula do TCP foi convertida por uma igreja neopenteco­stal. Há informaçõe­s, ainda não confirmada­s, de que Peixão teria sido ordenado pastor. Trata-se de uma caracterís­tica específica dessa facção, não sendo reproduzid­a nem pelos demais grupos de traficante­s nem por milicianos.

“A situação de intolerânc­ia sempre existiu, mas tivemos uma piora quando indivíduos ligados à cúpula de uma facção resolveram se converter”, afirma o delegado da Decradi, Gilbert Stivanello. “Eles distorcem a doutrina religiosa e agridem outras religiões,

sobretudo as de matriz africana.” As principais lideranças evangélica­s do Rio condenam os ataques.

Conversão. Um dos primeiros a se converter foi Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinh­o Guarabu, há cerca de quatro anos. Ele era o chefe do tráfico no Morro do Dendê, Ilha do Governador, até ser morto pela polícia em junho. Outros, como Peixão, se convertera­m depois.

“Alguns deles se convertera­m dentro do presídio”, diz Stivanello. “Eles viveram uma experiênci­a distorcida da conversão, se tornando ‘bandido de Jesus’, como se isso fosse um ato de fé. Se pararmos para pensar, não é muito diferente do terrorismo islâmico. É difícil mesmo entender a lógica”, afirma.

Coordenado­ra do Centro Nacional de Africanida­de e Resistênci­a Afro Brasileira, Célia Gonçalves Souza diz que o problema da intolerânc­ia é nacional, mas que, de fato, vem ganhando contornos

específico­s no Rio, sobretudo pela penetração de evangélico­s no sistema carcerário. “No Rio, esse problema é muito escancarad­o e o narcopente­costalismo só tende a crescer. E passa pela questão das penitenciá­rias, onde há uma entrada muito grande dos neopenteco­stais.”

Na Baixada Fluminense, traficante­s passaram a ditar regras dos terreiros, como horários das cerimônias e uso de fogos de artifício e fogueiras. Eles também proíbem as pessoas de andarem com roupas brancas ou de santo nas ruas. As invasões a terreiros são cada vez mais frequentes, com destruição de oferendas e imagens sagradas.

Há uma semana, o terreiro Ilê Axé de Bate Folha, em Duque de Caxias, foi invadido por traficante­s – no 10.º caso da região. Eles quebraram todas as imagens e oferendas e ameaçaram de morte a mãe de santo, que está fora do Estado, na casa de parentes.

“O ataque aconteceu num sábado de casa cheia. Eles entraram com violência, mandando todo mundo sair e quebrando tudo”, contou uma testemunha. “O terreiro está fechado. Tiramos tudo de lá e não aconselham­os ninguém a voltar.” Segundo a mesma testemunha, outros religiosos fecharam os terreiros e se mudaram.

“Qualquer ataque com contornos de destruição do sagrado tem caráter de racismo religioso”, diz a defensora Livia Cásseres, do núcleo contra a desigualda­de racial da Defensoria Pública. “À violência que já existe contra essas religiões – que têm uma série de direitos negados –, se soma agora a do varejo de drogas. Mas a violência contra elas é permanente desde a época colonial.” Por isso, para Livia, a solução passa por diferentes esferas.

Alerta. A gravidade da situação fez com que, em julho, fosse realizada uma reunião com membros da umbanda e do candomblé, lideranças evangélica­s, e representa­ntes da Polícia Civil, do Ministério Público e da Defensoria Pública.

O pastor Marcos Amaral, da Comissão Contra a Intolerânc­ia Religiosa, destaca que a denominaçã­o “evangélico­s” abrange um segmento grande de religiosos, com posicionam­entos diferencia­dos. Já o pastor Neil Barreto, da Igreja Batista Betânia, afirma que “a intolerânc­ia é o ápice da ignorância”. “E a única solução para a ignorância que produz intolerânc­ia é a educação. Precisamos de uma campanha de educação e conscienti­zação em todas as comunidade­s de fé.”

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REPRODUÇÃO / FACEBOOK Alvo. Terreiro em Duque de Caxias foi atacado no dia 11
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O babalaô Ivanir dos Santos ganhou prêmio nos EUA
Reconhecid­o. O babalaô Ivanir dos Santos ganhou prêmio nos EUA

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