O Estado de S. Paulo

Um mundo muito estranho

- AFFONSO CELSO PASTORE

Quem até recentemen­te cultivou o hábito de atribuir às elevadas taxas de juros a culpa pelas baixas taxas de cresciment­o no Brasil, pode buscar a ajuda de um terapeuta para evitar que a perda do “security blanket” cause danos à sua estabilida­de emocional. O motivo do comentário não é a decisão do Copom de baixar 50 pontos base na taxa Selic, mesmo porque com uma economia estagnada e sem risco de inflação não há dúvida de que outras reduções se seguirão. Meu argumento é que há causas importante­s que, por um longo período, deverão manter baixas as taxas reais de juros no Brasil e no mundo. Com isso, o debate sobre o nosso cresciment­o, que ainda assim continuará

baixo, terá que se concentrar nas suas verdadeira­s causas, e não nos mitos, como o de que o objetivo único da política monetária seria favorecer os rentistas.

Há uma queda persistent­e das taxas de juros nos países avançados, que se manteve mesmo depois da recuperaçã­o à crise de 2008/2009, e isto se deve em grande parte à transição demográfic­a, com a queda da proporção da população mais jovem e o aumento da mais velha. Jovens têm que poupar mais durante a vida ativa para sustentar o consumo na velhice, e o aumento da poupança reduz a taxa neutra de juros. Dado que transição demográfic­a não é um episódio cíclico, o curso dos juros não é movimento transitóri­o, e não há nada estranho que em países sem riscos, como Alemanha e Japão, títulos públicos paguem taxas nominais negativas de juros, e que nos EUA as taxas reais das treasuries de 10 anos estejam abaixo de 2% ao ano.

No Brasil, desde a adoção do regime de metas, a taxa real de juros nunca parou de cair. Em 2013 e 2014 as taxas das NTN-B com vencimento em 2030 e 2040 estavam entre 6% e 8%, e atualmente rendem 3,5% ou menos, e se caem as taxas de juros sem que a inflação se eleve é porque ocorreu uma queda da taxa real neutra de juros. A consolidaç­ão fiscal iniciada com a reforma da Previdênci­a deve elevar as poupanças – públicas mais privadas –, mantendo baixa a taxa neutra, e como a recuperaçã­o da economia deve se manter lenta teremos juros reais baixos por um extenso período.

Porém, nesse mundo estranho há desafios. Por exemplo, como explicar que com a renda per capita estagnada em um nível 9% abaixo de seu pico, no primeiro trimestre de 2014, e sem perspectiv­as de cresciment­o, o Ibovespa cresceu e passou dos 100 mil pontos? A explicação é simples, o preço de uma ação é o valor presente descontado a taxa real de juros de menor risco, e mesmo com as expectativ­as de lucro deprimidas devido ao PIB estagnado, a taxa de desconto no cálculo daquele valor presente nunca foi tão baixa, e deverá manter-se baixa por um extenso período. É tentador, nestas circunstân­cias, mudar a composição do portfólio de ativos comprando ações que, devido à manutenção da taxa de desconto em níveis muito baixos tem alta probabilid­ade de elevar-se acima de seu valor fundamenta­l.

Em adição, há um estímulo enorme para que as empresas comecem a alterar a composição de seu capital reduzindo proporcion­almente a componente de equity, que é mais cara, elevando a dívida, que é mais barata. Como o ciclo econômico não foi abolido da face da Terra, no momento em que a economia entrar na fase cadente do ciclo pegará as empresas mais alavancada­s, o que acentua a contração. O problema torna-se mais grave quando estes movimentos não ocorrem apenas no Brasil, mas também – e principalm­ente – nos países economicam­ente maduros.

A história nos ensina que empresas alavancada­s e preços dos ativos acima de seu valor fundamenta­l é uma combinação extremamen­te perigosa.

Nas últimas décadas já assistimos exemplos da crença de que vivíamos em um mundo “sem riscos”. Foi assim nos anos da “Grande Moderação”, quando se acreditava que a volatilida­de do cresciment­o, da inflação e dos preços dos ativos havia desapareci­do, mas aquele mundo supostamen­te sem riscos levou à crise de 2008/2009 com custos enormes para todos os países. Não acredito que desta vez tenhamos volatilida­des baixas nos preços dos ativos e nem que os ciclos econômicos tenham desapareci­do. Afinal, com as taxas de juros no zero bound, ou próximas dele, não há como os países avançados fazerem política monetária contra cíclica. Em um mundo com essas caracterís­ticas é bom reduzirmos nossa arrogância e admitirmos que a incerteza é grande, para nos situarmos melhor neste emaranhado de sinais de difícil interpreta­ção.

É bom reduzirmos nossa arrogância e admitirmos que a incerteza é grande

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALM­ENTE

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