O Estado de S. Paulo

Gilead e EUA, uma semelhança incômoda

A 3ª temporada de ‘O Conto da Aia’ estreia hoje, 18, no Paramount

- / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ Eleanor Stanford

BRUCE MILLER ROTEIRISTA DA SÉRIE

Quando Bruce Miller começou a trabalhar numa adaptação para a TV do livro O Conto da Aia, de Margaret Atwood (1985), as primárias para a eleição presidenci­al de 2016 ainda não tinham sido realizadas. A Suprema Corte era menos conservado­ra. Milhares de crianças ainda não haviam sido separadas dos pais na fronteira sul dos EUA. Os eventos do romance de Atwood, ambientado numa ditadura religiosa chamada Gilead, na qual as poucas mulheres férteis são separadas dos filhos e forçadas a gerar outros para casais poderosos –, pareciam, se não impossívei­s, no mínimo longe de serem iminentes.

Desde então, parlamenta­res de vários Estados votaram pelo banimento ou pela limitação do acesso das mulheres ao aborto, e parece cada vez mais possível que o caso judicial Roe contra Wade (a partir do qual a Suprema Corte reconheceu o direito ao aborto nos EUA) venha a ser questionad­o. O isolacioni­smo floresceu. Muito do que ocorre na 3.ª temporada de Handmaid’s Tale (O Conto da Aia) – que começa a ser exibida neste domingo, 18, às 20h, no Paramount Channel – “está próximo do que vem acontecend­o nos EUA”, disse Miller. “É horrível. Nosso trabalho é imaginar o que acontece num dos piores lugares do mundo. E de repente esse lugar é o nosso.”

Após se aterem à trama do romance de Atwood na primeira temporada, Miller e seus redatores foram além da fonte na segunda, imaginando a transforma­ção de June (Elisabeth Moss) de uma jovem comum em combatente da liberdade. Mesmo tendo oportunida­de de fugir de Gilead no fim da temporada 2, ela escolhe ficar.

Em entrevista recente em Nova York, Miller falou de cansaço

de violência, de seus esforços para manter a série atraente num clima político pesado e de como é dirigir um seriado tão intimament­e ligado à dor feminina. Na sequência trechos editados da entrevista.

• Parece que há menos violência nessa nova temporada.

Depende de como você define violência. Gilead é um lugar brutal. O fato de estarmos cansados de violência não significa que ela vá parar. Tento mostrar apenas coisas que, se você não vir, pode não entender a história ou seus personagen­s. Eliminar isso é eliminar aquilo contra o que June luta. Tomamos também o cuidado de nunca inventar crueldade. Já existe muita crueldade verdadeira no mundo.

• A 1ª temporada estreou no primeiro semestre de 2017. Como o clima político dos dois últimos anos nos EUA afetou a série?

Comecei a escrever a 1.ª temporada antes do início das primárias. O fato de uma série política coincidir com um momento político forte ajuda – não é sempre que as pessoas param para avaliar se um governo está funcionand­o ou não. Não é só nos Estados Unidos. Em outros lugares também há a sensação de que a série reflete seu sistema político. Vi isso especialme­nte no Rio de Janeiro. Ali eles estão empolgados com a série porque está havendo um movimento #MeToo em sua cultura. Creio que você também vai ver um pouco dessa história em seu mundo político. Margaret é universal.

• Para alguns, assistir a uma série sobre uma distopia repressiva não é o melhor escapismo quando a própria realidade política é repressiva. Isso muda seu conceito de entretenim­ento?

Quero que o programa entretenha. O mais importante é que, quando você assiste, queira continuar até o fim. A série é para ser vista como uma história interessan­te.

• Como você faz uma série tão centrada na experiênci­a feminina?

As mulheres são maioria no meu quadro de redatores. É uma série sobre uma mulher, June, em seu mundo. É preciso gente que não se sinta mal com perguntas sobre assédio sexual, gravidez, aborto...

• Muito da trama gira em torno de experiênci­as terríveis: estupro, tortura, prisão. Como é abordar tais traumas na série?

Pesquisamo­s e consultamo­s especialis­tas. Por exemplo, Emily (aia vivida por Alexis Bledel) cruza a fronteira e se torna uma refugiada. Como é essa experiênci­a? Que acontecerá se ela voltar para casa?

• No terceiro episódio da nova temporada se ouve a voz de June dizendo: “Você queria uma cultura dominada pelas mulheres e agora existe uma. Não é o que você pensava, mas está aí”.

É uma citação do livro. Ela indica que uma cultura feminina pode ser tanto positiva quanto tóxica e voltar-se contra si mesma.

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MGM TELEVISION June/Offred. Elisabeth Moss em ‘Handmaid’s Tale’: transforma­ção de uma jovem comum em combatente da liberdade

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