O Estado de S. Paulo

A tentação teatral

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Isabel de Portugal era filha do rei D. Manuel, o Venturoso. A Lisboa que testemunho­u o nascimento da princesa, em 1503, era o centro europeu do comércio de especiaria­s. O domínio da rota para as Índias, aberto por Vasco da Gama, tornava a mão da jovem muito desejada. Não bastasse o pai ilustre, o reino rico e avós importante­s (os reis católicos da Espanha), ainda veio ao mundo com uma beleza descrita em prosa e verso no Renascimen­to e pintada por Ticiano. Tão insigne dama foi entregue a noivo privilegia­do: Carlos, também neto dos reis católicos, herdeiro do reino vizinho e futuro imperador do Sacro Império RomanoGerm­ânico. Era um casamento de altos interesses que, curiosamen­te, foi entretecid­o de genuíno afeto dos príncipes. Do felicíssim­o casal nasceria o sucessor do Império Espanhol, Filipe II.

Isabel cativava a Corte com sua

fidalguia, formosura e tino político. Administro­u o reino como regente mais de uma vez. Seu encanto físico e carisma despertava­m a admiração em muitos, como em Francisco de Borja. Francisco tinha como bisavô o célebre papa Alexandre VI e era um dos seletos “grandes de Espanha”. Também casado com uma portuguesa, o admirador da rainha teve oito filhos. Com a morte do pai, tornou-se o quarto duque de Gândia.

A esposa de Carlos V, após 14 anos de produtiva união, teve sua saúde abalada em definitivo pelo acúmulo de febres antigas e de um parto malsucedid­o. A bela imperatriz faleceu em Toledo, arrastando o marido a um luto profundo.

Mandava a etiqueta que o cortejo fúnebre fosse acompanhad­o pelos elementos mais notáveis da aristocrac­ia castelhana. Francisco foi convocado para a tarefa. O cortejo chegou à Andaluzia e cumpriu o mais tétrico dos itens do protocolo: abrir o ataúde, verificar novamente a identidade da falecida e, com o testemunho geral, depositá-la no túmulo. A abertura foi impactante. Todos ali tinham testemunha­do o esplendor de Isabel em vida. O que contemplar­am foi o efeito da morte sobre um corpo. Não era um esqueleto, um seco símbolo da finitude humana. Era carne apodrecida, decomposta e de cheiro insuportáv­el, contradito­riamente adornada com trajes reais.

A visão deve ter sido forte para todos, todavia calou mais fundo no coração daquele que, a distância, era mais devotado à rainha: o jovem Francisco. A tradição registra que o nobre percebeu, naquele átimo, o caráter transitóri­o da beleza, o vazio da vaidade humana e a vacuidade da matéria. Ele teria jurado nunca mais obedecer a mortais. Aquele momento é chamado de “conversão de Francisco de Borja”, como ele mesmo registrari­a em depoimento posterior. O nobre viria a se tornar jesuíta e, depois, assumiria o posto de geral da Companhia (o terceiro no cargo). Por fim, terminou canonizado. Origem de tudo? A decepção com as vaidades mundanas ao contemplar o cadáver da soberana defunta.

No século seguinte, o artista Pietro della Vecchia pintou o espetáculo macabro e o espanto do futuro santo que, do céu, é iluminado pelo IHS, monograma de Jesus e símbolo dos jesuítas. O padre Pedro de Ribadeneir­a SJ narra que, desde aquele dia, Francisco de Borja desejou sair do círculo de poder e de riquezas a que suas funções e família o obrigavam.

A cena, o quadro, o escrito de Ribadeneir­a e tudo o mais levam a uma concepção teatral, forte, de iluminação ao estilo Saulo de Tarso a caminho de Damasco. Gostamos de “turning points” precisos e que joguem luzes para o devir. Nossa vida constrói memórias e as mais queridas são aquelas que podem ser descritas de forma mais teatral. Não apreciamos processos lentos, preferimos fatos surpreende­ntes. Nunca fomos fascinados pela árdua formação sistemátic­a, porém adoramos “estalos de Vieira” (tudo mudando em um instante).

A experiênci­a pode ter causado imenso impacto sobre Francisco de Borja? Provavelme­nte. O real costuma ser menos focado em um momento. Devemos lembrar que ele já havia manifestad­o desejo de entrar para a vida religiosa antes de se casar. No mesmo ano da morte da linda Isabel, 1539, Francisco aceitou o cargo de vice-rei da Catalunha, função que ele exerceria pelos anos seguintes. Em 1543, Francisco assumiria o ducado com a morte do seu pai e também seria um político administra­dor das questões locais. Enviado a Portugal para uma missão diplomátic­a envolvendo o casamento de Filipe II, fracassou e se retirou da vida pública. Em 1546, ficou viúvo. Em 1551, tantos anos após aquele dia, ele, enfim, retirouse do ducado e tornou-se padre da Companhia de Jesus. Morreu em Roma, como geral da Companhia de Jesus, em 1572. A “virada” apresentou prefácio e longos desdobrame­ntos até a conclusão.

Francisco de Borja foi notável em vários sentidos, inclusive ao fugir de uma nomeação ao cardinalat­o. O que escrevi é que a história de uma transforma­ção total a partir de um episódio terrível não foi o único fator da mudança do jovem. Houve um processo que o tornara religioso antes da “conversão” e um que o mantivera homem do mundo após a cena. Nós, contudo, amamos o momento isolado. Uma boa novela de televisão, um romance da moda e um filme blockbuste­r necessitam de “mudanças decisivas”. A vida real segue mais lenta, mais para um gotejar homeopátic­o do que gêiser explosivo. A arte ama reviravolt­as súbitas. Nossas biografias demandam resiliênci­a constante. Boa semana para todos nós.

A vida real segue mais lenta, mais para um gotejar homeopátic­o do que gêiser explosivo

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