O Estado de S. Paulo

O DESAFETO DO BRUXO DO COSME VELHO

- É CRÍTICA LITERÁRIA, COM PÓS-DOUTORADO NA USP. ORGANIZOU, COM HÉLIO GUIMARÃES, ‘ESCRITOR POR ESCRITOR: MACHADO DE ASSIS SEGUNDO SEUS PARES’ Ieda Lebensztay­n ✽

“Faltava-lhes estilo, que é uma grande lacuna nos escritos do Sr. Sílvio Romero; não me refiro às flores de ornamentaç­ão, à ginástica de palavras; refiro-me ao estilo, condição indispensá­vel do escritor”, observa Machado de Assis em A Nova Geração. Fatalmente não agradou a Sílvio Romero tal crítica, segundo a qual seu pensamento não encontrava forma para romper do cérebro. E Machado ponderava que, enquanto os medíocres respondem a objeções com impropério­s, os talentosos o fazem com o silêncio. Eis que Romero dedicou Machado de Assis: Estudo Comparativ­o de Literatura Brasileira para lhe desmerecer a arte e exaltar Tobias Barreto. Ante esse disparate, Machado conclui, em carta a Magalhães de Azeredo, que a injustiça em meio a elogios ensina a “virtude da humildade”. Consciênci­a dos limites, a humildade supera a arrogância, indigna e vã.

Mas quem diria que alguém odiaria Machado de Assis tanto ou mais que Sílvio Romero e seria insuflado por este a publicar um livro de memórias para dessacrali­zar nosso grande escritor? Pois bem: José Almeida Júnior, vencedor do prêmio Sesc com Última Hora, agora lança O Homem que Odiava Machado de Assis, em que empresta a pena ao pretenso romancista Pedro Junqueira, cujo propósito na vida era tirar a Machado o amor de Carolina e a glória literária. Aos leitores, sobretudo aos machadiano­s, sobrará indignação para com esse narrador em primeira pessoa: ele ousou engravidar e abandonar Carolina no Porto, causando a morte de seus pais e o aborto do filho; e a fez, depois do sofrimento, ter uma recaída em seus braços no Rio de Janeiro, traindo o marido Machado. Mais do que isso, Pedro torna Machado traído ao acusá-lo, para Carolina, de traidor, chantagist­a e plagiador de suas memórias nas de Brás Cubas – valha-nos, defunto autor!

Assim, o talento inventivo de Almeida Júnior, aliado a seu conhecimen­to da história do Brasil, encontrou nos estudos da vida e da obra machadiana matéria fecunda, com base na qual criou uma narrativa que nos desperta o riso e o desejo de saber mais sobre o contexto histórico e a ascensão do menino do morro do Livramento. Pressupond­o e estimuland­o a leitura de obras biográfica­s, de Alfredo Pujol, Lúcia Miguel Pereira, Magalhães Júnior, Viana Filho, Jean Michel Massa, o romance nos possibilit­a deparar com as figuras, recriadas como personagen­s, de Machado, Carolina e seus irmãos Faustino e Miguel de Novais, Romero, Artur Napoleão, Joaquim Nabuco, e circular em cenários como a rua do Ouvidor, a livraria Garnier, o teatro Alcazar, o cais Pharoux.

O olhar vingativo contra Machado vem já na abertura do romance: Pedro e Romero destilam inveja ante o enterro do autor do Memorial de Aires, que teve as presenças de Rui Barbosa, Euclides, José Veríssimo, Mário de Alencar, Bilac. Num convite da Faro Editorial à leitura, esse capítulo figura num folheto que acompanha o livro de Almeida e simula O Corsário, jornal sensaciona­lista cujo dono foi assassinad­o. Tal periódico estampou em 1883 uma nota que satirizava Machado como amante da atriz Inês Gomes. Reproduzid­a parcialmen­te no folheto, a nota tem a função, no romance, de reaproxima­r Carolina e Pedro, e de desnudar-lhe a tibieza de caráter. Ele é infame como um trocadilho atribuído a Machado: gago, teria chamado Inês, saída do banho, “inês… gotável”.

Se aprendemos com o Bruxo e sua fortuna crítica a duvidar de narradores, rimos quando Pedro acusa Joaquim Maria de o invejar desde criança. Dada a precisa construção do protagonis­ta, logo nos afastamos dele, que trata, com desprezo, como “mulato” o menino de inteligênc­ia notável que já declamava poemas enquanto ele, branco e rico, mal sabia ler. E vemos o desamparo afetivo desse colega de classe de Brás Cubas, rancoroso de seu estilo: grande cafeiculto­r em São Paulo, o pai de Pedro o deixara para ser criado no Rio e, de longe, definira que ele estudaria Direito em Coimbra e o sonhava deputado federal no Brasil. Na ficção de Almeida Júnior, justamente uma página das Balas

de Estalo machadiana­s, sob o pseudônimo Lélio, vai desmascara­r a falta de caráter de Pedro – o pseudoabol­icionista, proprietár­io de mais de mil escravos –, liquidando suas pretensões de ser deputado e obrigando-o a fugir para Portugal.

Sobressai a representa­ção do advogado malformado na Europa que, embora às voltas com a Lei do Ventre Livre, vivia às custas do pai escravocra­ta, no ócio. Destaca-se a sequência quando da morte do pai: o abraço comovido da babá ex-escrava enoja Pedro; anacrônico e atual, cômico se não fosse trágico, seu discurso louva o escravocra­ta por ter oferecido “trabalho digno e humano” a tantos e contribuíd­o para “um país melhor”.

“Cordialmen­te, execrava-as”: três palavras do conto Primas de Sapucaia!, que relativiza infortúnio­s e benefícios, podem traduzir a atitude de Machado ante as mediocrida­des que o cercavam. Num mundo de violências de coração, temos o paradoxo de apreciar O Homem que Odiava Machado de Assis e, assim, gostar mais ainda do Bruxo.

É CRÍTICA LITERÁRIA, COM PÓS-DOUTORADO NA USP. ORGANIZOU, COM HÉLIO GUIMARÃES, ‘ESCRITOR POR ESCRITOR: MACHADO DE ASSIS SEGUNDO SEUS PARES’

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FACULDADE ZUMBI DOS PALMARES
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No romance ‘O Homem que Odiava Machado de Assis’, José Almeida Júnior usa as lacunas de sua biografia para imaginar um hipotético arquirriva­l
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AUTOR:
JOSÉ ALMEIDA JÚNIOR
EDITORA: FARO EDITORIAL 192 PÁGINAS
R$ 39,90
O HOMEM QUE ODIAVA MACHADO DE ASSIS AUTOR: JOSÉ ALMEIDA JÚNIOR EDITORA: FARO EDITORIAL 192 PÁGINAS R$ 39,90

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