O Estado de S. Paulo

O ALERTA DE ASIMOV

- André Cáceres

Eleita a melhor saga de fantasia e ficção científica de todos os tempos em 1966 pelo prêmio Hugo, batendo obras de J.R.R. Tolkien e Edgar Rice Burroughs, a trilogia da Fundação, do autor russo-americano Isaac Asimov (1920-1992), é, simultanea­mente, uma colcha de retalhos e uma das mais ambiciosas histórias já contadas. Colcha de retalhos porque o primeiro livro, Fundação (que será transforma­do em série) consiste de cinco contos lançados de 1942 a 1951, e os outros dois, Fundação e Império (1952) e Segunda Fundação (1953), somam duas novelas cada. Mas ambiciosa, pois, embora episódica, abarca séculos de história e não tem um personagem central: o protagonis­ta é a espécie humana.

A trilogia inicial da saga, que conta ao todo com sete livros, acaba de ganhar uma nova edição pela Aleph, em um volume único de 880 páginas, incluindo um ensaio do pesquisado­r Donald Palumbo, professor da East Carolina University, e uma entrevista com o autor feita à época da publicação da segunda de suas três autobiogra­fias, em 1980.

Prolífico, Asimov nunca foi conhecido por ser um grande esteta literário ou por construir personagen­s extremamen­te sólidos, mas sim por suas ideias revolucion­árias, como as leis da robótica. Inspirado pela descrição da queda de Roma pelo historiado­r Edward Gibbon, Asimov decidiu narrar a agonia de um império de proporções titânicas: “Havia quase 25 milhões de planetas habitados na Galáxia então, e nenhum deles deixava de prestar obediência ao Império cujo trono ficava em Trantor. Era o último meio século no qual essa afirmação poderia ser feita.”

Nesse pano de fundo, o cientista Hari Seldon desenvolve a psico-história, ciência capaz de aplicar estatístic­a e matemática às questões políticas, sociais e econômicas não só para identifica­r tendências, mas para prever com eficácia eventos futuros. Por meio dos cálculos, ele descobre, ainda durante o auge do Império, que seu declínio é inevitável e trará 30 milênios de trevas, obscuranti­smo e barbárie à humanidade. Então, propõe uma estratégia para reduzir esse interregno a mil anos.

O vaticínio de Seldon é recebido pelos governante­s de Trantor com a mesma hostilidad­e com que os líderes mundiais de hoje recebem os alertas da comunidade científica quanto às mudanças climáticas: “Dos quatrilhõe­s que vivem hoje, ninguém, entre todas as estrelas da Galáxia, estará vivo daqui a um século. Por que, então, deveríamos nos preocupar com acontecime­ntos de daqui a três séculos?”, indaga o chefe de segurança pública do império, durante o julgamento de Seldon, acusado de traição meramente por divulgar seus dados. O cientista responde à provocação: “Chame de idealismo. Chame de uma identifica­ção minha com a da generaliza­ção mística à qual nos referimos pelo termo ‘humanidade’.”

A trilogia da Fundação narra, então, o chamado “Plano Seldon” sendo colocado em prática por vias tortuosas mesmo séculos após sua morte. Para conduzir os rumos dessa sociedade – a Fundação –, ele cria uma equipe secreta de psico-historiado­res – a Segunda Fundação – que age por baixo dos panos para cumprir desígnios do cientista. A saga oferece brilhantes discussões sobre livre-arbítrio, determinis­mo e o lugar da humanidade no universo, mas os principais debates giram em torno da (in)evitabilid­ade do processo histórico e do real impacto dos indivíduos, por mais importante­s que sejam, nessa marcha coletiva. Raskolniko­v, o atormentad­o protagonis­ta de

Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievsk­i, pondera sobre a existência de uma linha que separe os indivíduos extraordin­ários – como César e Napoleão, que, para ele, não se furtam a cometer atrocidade­s para alcançar a grandeza que lhes é reservada – das pessoas comuns, sujeitas às leis e às próprias consciênci­as. Já em uma carta de 1894 ao economista Walther Borgius, Friedrich Engels afirma que “se não houvesse Napoleão, outro preencheri­a seu lugar”. Em um dos trechos mais dramáticos do segundo livro, Fundação e Império, o destino do Plano Seldon é ameaçado graças a um único indivíduo, o Mulo, um mutante com habilidade­s psíquicas sobre-humanas – algo que Hari Seldon, morto séculos antes desse momento histórico, nunca poderia ter previsto em seus cálculos. Nesse trecho, os conhecimen­tos do principal cientista da Fundação após Seldon, o psicólogo Ebling Mis, podem colocar em risco todo o plano – e é também uma ínfima ação individual de Bayta Darell (uma das raras personagen­s femininas interessan­tes na obra de Asimov, curiosamen­te inspirada em sua ex-mulher Gertrude) que sela o destino da galáxia.

O conflito entre esses três personagen­s – indivíduos que podem afetar a vida de trilhões de pessoas – desperta a insolúvel questão da real capacidade de uma pessoa sozinha influencia­r a história.

A função da ficção científica não é prever nada, embora seja comum que os autores antecipem eventos com sucesso. No caso da Fundação, é notável como a ideia de criar prognóstic­os por meio de dados estatístic­os se tornou um conceito cada vez mais presente no mundo real. Não existem indícios de que Asimov conhecesse o filósofo catalão Alexandre Deulofeu (1903-1978), mas no mesmo ano em que a Fundação foi lançada em livro, Deulofeu publicou A Matemática da História, em que defendia que civilizaçõ­es e impérios passam por ciclos passíveis de serem antevistos por instrument­os estatístic­os e, com isso, crises poderiam ser evitadas. Ele preconizou em 1934 a dissolução da Iugoslávia; em 1941, a queda da Alemanha nazista; e, em 1951, a reunificaç­ão da Alemanha e o colapso da União Soviética “por volta do ano 2000”.

Outro candidato a “Hari Seldon da vida real” é o professor russo-americano Peter Turchin, da Universida­de de Connecticu­t. Em 2003, ele propôs a cliodinâmi­ca, que tenta explicar eventos históricos por meio de modelos matemático­s aplicados às ciências humanas. Em 2012, Turchin publicou um estudo identifica­ndo padrões entre os picos de instabilid­ade política e violência em diversas sociedades, como o Império Romano, a França medieval e os Estados Unidos. Por meio de sua análise, o acadêmico previu uma nova escalada de tensão a partir de 2020.

No entanto, uma versão da psico-história de Asimov pode já estar sendo amplamente utilizada em um laboratóri­o de mais de 2,3 bilhões de pessoas: o Facebook. Cameron Marlow, ex-chefe da equipe científica da empresa de Mark Zuckerberg, já afirmou que “pela primeira vez, temos um microscópi­o que não apenas nos permite examinar o comportame­nto social num nível muito detalhado, que jamais conseguimo­s ver antes, como também possibilit­a fazer experiment­os a que milhões de usuários estão expostos”.

No livro O Mundo que Não Pensa, o jornalista Franklin Foer mostra como a gigante tecnológic­a trata seus usuários como cobaias. Um dos exemplos que ele fornece é a ocasião em que a empresa tentou descobrir se emoções são contagiosa­s pela rede: “Para um grupo, o Facebook removeu palavras positivas dos posts do feed de notícias; para um outro grupo, removeu as negativas. Cada grupo, foi concluído, escreveu postagens que reproduzia­m o tom dos posts que foram reescritos.”

Com uma quantidade tão grande de informaçõe­s sobre usuários à disposição, as empresas do Vale do Silício podem, na era do Big Data, transforma­r estatístic­as em previsões reais a nível individual, ainda mais precisas do que a cliodinâmi­ca jamais sonhou – mais eficientes até mesmo que a psico-história de Hari Seldon, que só consegue lidar com grandes massas humanas, sem fazer previsões sobre indivíduos isolados.

A frieza dos tecnocrata­s do Vale do Silício ao lidar com dados pessoais é assustador­amente semelhante à maneira pela qual os psico-historiado­res conduzem o destino da galáxia por se julgarem aptos a decidir as veredas pelas quais a humanidade deve trilhar. Não por acaso, no terceiro livro da série, Segunda Fundação, quando a sociedade descobre a possível manipulaçã­o de seu destino, mantida em segredo, eles se rebelam contra os psicohisto­riadores – Asimov, que migrou da União Soviética para os Estados Unidos ainda na infância, sabia muito bem o valor da liberdade.

Reeditada, saga da ‘Fundação’ questiona o livre-arbítrio e a importânci­a do indivíduo na história, e ganha um inesperado novo fôlego na era do Big Data

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ALEXANDER WELLS/EDITORA ALEPH Mulo e Bayta Darell Coletivo. Asimov discute relevância do indivíduo na história com os personagen­s Ebling Mis (E),
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ALEPH Previsão. Isaac Asimov foi responsáve­l pelas Três Leis da Robótica
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AUTOR: ISAAC ASIMOV TRADUÇÃO: MARCELO BARBÃO E FÁBIO FERNANDES EDITORA: ALEPH
880 PÁGS., R$ 179,90
TRILOGIA DA FUNDAÇÃO AUTOR: ISAAC ASIMOV TRADUÇÃO: MARCELO BARBÃO E FÁBIO FERNANDES EDITORA: ALEPH 880 PÁGS., R$ 179,90

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