O Estado de S. Paulo

ESPELHOS DO MUNDO

- Júlia Corrêa

“Que a deusa Ishtar olhe com benevolênc­ia o letrado que não mudar a tabuinha de lugar, mas que a coloque novamente na biblioteca; que ela denuncie com indignação aquele que a levar para fora.” Datada de 600 a.C., tal inscrição pouco sutil encontrada em uma tabuinha de Uruk, antiga cidade da Suméria, chega até nós quase como uma anedota de como a organizaçã­o dos escritos da humanidade jamais foi empreendim­ento simples.

O desenvolvi­mento da escrita, dos suportes, dos métodos de conservaçã­o e catalogaçã­o percorre período nada modesto da história da civilizaçã­o, estendendo-se, pelo menos, de 4 mil a.C. aos dias de hoje. Em outras palavras, vem desde a época em que se estabelece­ram suportes como as tabuinhas de argila e os rolos de papiro, na qual nasceram os signos cuneiforme­s e hieróglifo­s, para alcançar as experiênci­as digitais mais recentes.

As biblioteca­s, espaços que respondem precisamen­te a essa necessidad­e do homem de abrigar seus registros, são tema de duas obras – História das Biblioteca­s: de Alexandria às Biblioteca­s Virtuais, de Frédéric Barbier, e A Biblioteca: uma História Mundial, de James W.P. Campbell e Will Pryce. Embora os títulos guardem semelhança­s e seus autores empenhem-se igualmente em estabelece­r uma linha do tempo da formação desses espaços, o leitor encontrará abordagens bastante distintas.

Pesquisado­r do Centre National de la Recherche Scientifiq­ue e diretor da cátedra História e Civilizaçã­o do Livro, da École Pratique des Hautes Études, Barbier expõe visão muito mais teórica em relação à constituiç­ão das biblioteca­s como instituiçõ­es dotadas de estruturas, identidade­s e funções variadas. Como ele nos lembra, o sintagma de “biblioteca” é de origem grega e significa “o armário dos livros”. Passando, com o tempo, a designar os ambientes onde esses móveis estão dispostos, é transposto para o latim, mas permanece em desuso por boa parte da Idade Média, época em que “livraria”, ainda sem o caráter comercial, é o termo mais empregado. A atual acepção só se firmaria no século 18, quando a Encyclopéd­ie incorporou “biblioteca” como um de seus verbetes.

Posto isso, o autor propõe uma análise que privilegia a antropolog­ia, a partir da qual ele forja uma sofisticad­a teoria: a das biblioteca­s como instituiçõ­es de transferên­cia cultural. Mais do que simples espaços de armazename­nto, elas adquirem relevância “na medida em que oferecem uma parte mais ou menos importante da informação disponível sob uma forma escrita num dado momento”. Isso fica evidente, por exemplo, quando pensamos na importação de livros da cultura grega para as biblioteca­s abertas da Roma pré-imperial, muitas delas fruto de pilhagens de guerras no Oriente.

Vale lembrar que foi na Grécia, sobretudo, que ocorreu a passagem da literatura oral para a referência escrita, no momento em que Licurgo, legislador espartano, teria decidido copiar os poemas homéricos. Bem mais tarde, Alexandre, o Grande, que havia estudado com ninguém menos que Aristótele­s, é quem daria as bases, na nova capital que instaura no Egito, para o grande modelo de biblioteca que inspira até hoje a nossa civilizaçã­o: a da Alexandria. Pautada, segundo Barbier, pela curiosidad­e intelectua­l que marca o pensamento grego e comandada, então, pelos sucessores da Dinastia Ptolemaica, a instituiçã­o reuniria esforços para adquirir as obras aristotéli­cas, assim como os originais

de nomes como Ésquilo, Sófocles e Eurípides.

Conforme o autor, não apenas os conteúdos dos livros são objetos de tais transferên­cias, mas a própria instituiçã­o das biblioteca­s, com seus modos de funcioname­nto e representa­ções, também o são. E o termo “representa­ção” aparece mesmo ligado a “encenações” que governante­s propõemse a fazer com esses espaços, ao verem a apropriaçã­o do que Barbier chama de “imagem refratada do saber universal” como formas de legitimaçã­o.

É nesse mesmo sentido que elas passam a ser pensadas sob perspectiv­a, ao mesmo tempo, humanista e política, o que ajuda a disseminar a prática da criação de grandes biblioteca­s de vocação enciclopéd­ica. Na Renascença, por exemplo, soberanos, príncipes e o próprio papado chegavam a concorrer uns com os outros para criar coleções.

A partir desses e outros casos, Barbier nos convida a viajar pelos distintos processos que marcaram nossa busca por sabedoria. Relata-nos detalhes de escavações com histórias como as das tabuinhas; passa pela criação e queda das biblioteca­s da Antiguidad­e; mostra-nos a retomada dessa tradição pelo Cristianis­mo; a multiplica­ção de instituiçõ­es de ensino e a revolução de Gutenberg que têm início no período medieval, assim como a ideia renascenti­sta das biblioteca­s como conservató­rio do pensamento humano; salienta as bases da biblioteco­nomia moderna estabeleci­das na era barroca; o ideal iluminista de esclarecim­ento público, as revoluções industriai­s, até a atual e complexa desmateria­lização dos livros.

O grau de detalhamen­to do qual o autor lança mão se repete, pois, em uma obra de quase 400 páginas de texto, poucas ilustraçõe­s, mas vasto e enriqueced­or material que disseca ao modo acadêmico comum aos franceses. Por isso, antes de contrastar, complement­a tão bem o livro de Campbell e Will Pryce.

Verdadeira obra-prima do objeto livro e muito mais concisa e direta na contextual­ização histórica, a segunda obra foca, essencialm­ente, as edificaçõe­s. Enxergando a história das biblioteca­s como um campo da arquitetur­a, o professor James Campbell convidou o fotógrafo Will Pryce para viajar por 80 biblioteca­s ao redor do mundo. Segurament­e, o leitor ficará deslumbrad­o com as belíssimas imagens em alta definição que são apresentad­as – embora os próprios autores reconheçam a experiênci­a singular que é visitá-las.

Campbell ressalta que uma caracterís­tica que as diferencia de outros espaços é a importânci­a primária de seus móveis e acessórios, sem os quais é muito difícil discutir sua arquitetur­a. Assim, a forma física dos livros, que, como já vimos, mudou significat­ivamente ao longo do tempo, sempre determinou seus formatos e formas de organizaçã­o, como, por exemplo, a disposição das prateleira­s.

Segundo o autor, preocupaçõ­es envolvendo aspectos como a calefação, a iluminação e métodos de conservaçã­o também favorecera­m certos modos de construção – e essa variedade, por isso mesmo, nunca seguiu uma evolução direta. Não por isso, o livro deixa de apresentar um panorama histórico mais ou menos linear, em um percurso semelhante ao apresentad­o por Barbier. Devido ao esforço da dupla em selecionar as 80 belíssimas biblioteca­s que encontramo­s no livro, é válido nos determos em alguns desses projetos específico­s.

Tida como a mais conservada entre as da Antiguidad­e, a Biblioteca de Celso foi construída a mando do filho do cônsul Tibério Júlio Celso Polemeno, por volta de 135 d.C., na cidade grega de Éfeso, atual Turquia. A ideia era celebrar o pai em um espaço que também servisse de mausoléu. Decorada com relevos e estátuas como a de Sofia, simbolizan­do a sabedoria, a fachada conta hoje com cópias reconstruí­das, no século 20, a partir de suas ruínas. Se a deterioraç­ão do local embaça as noções de como era a edificação, o autor mostranos, com uma planta baixa, como era pensada para que fosse iluminada toda pela frente. Assim como as paredes, separadas, foram pensadas assim para evitar que a umidade chegasse aos livros.

Em um salto para a Idade Média, podemos observar, a partir de construçõe­s como a Biblioteca Malatestia­na, em Cesena, na Itália – praticamen­te inalterada há 560 anos –, caracterís­ticas comuns ao período, como as fileiras de banchi e também a posição fixa dos livros, acorrentad­os a uma mesa cujo suporte se dá pelo assento do banco da frente. Com mobília original intacta, a biblioteca holandesa da paróquia da igreja de St. Peter e St. Walburga, em Zutphen, é um resquício do mesmo período, sendo um exemplar das denominada­s biblioteca­s de atril, com livros acorrentad­os por um bastão no topo, diante dos quais, sentados em bancos estreitos, os leitores ficam um de frente para o outro.

De importante­s exemplares renascenti­stas, como a luxuosa Biblioteca Marciana, em Veneza, projetada por Sansovino e decorada por pintores como Paolo Veronese, assim como a Laurenzian­a, em Florença, projetada por Michelange­lo como um espaço perfeitame­nte simétrico destinado a guardar a coleção dos Médici, o livro chega ao estilo barroco e ao rococó que caracteriz­am uma série de biblioteca­s reais. Nesse grupo, encontramo­s consagrada­s construçõe­s portuguesa­s, como a Biblioteca Joanina, localizada na Universida­de de Coimbra, e a do Palácio de Mafra, situada no distrito próximo a Lisboa. Do mesmo período, é impossível passar incólume pela Biblioteca da Abadia de Admont, na Áustria, cujos abades, em sua criação, envolviam-se diretament­e nas escolhas decorativa­s, como as impression­antes pinturas de seu teto, inspiradas pela Iconologia de Cesare Ripa.

Não apenas pela riqueza das imagens, mas pelas límpidas descrições, o livro é capaz de fazer o leitor se sentir transporta­do a esses espaços, que incluem ainda aqueles do neoclassic­ismo, como a Bibliothèq­ue Sainte-Geneviève, em Paris; construçõe­s do século 20, como a New York Public Library; e tantas outras que marcam o domínio do modernismo (“funcionais e esteticame­nte poderosas”), como a Biblioteca Beinecke, de Yale.

Diante das incertezas a respeito do futuro dos livros, os autores de ambas as publicaçõe­s parecem mostrar relativa esperança. Para Campbell, é difícil conciliar a ideia de morte iminente dos livros ao observarmo­s a “explosão contínua” de construção de biblioteca­s. Para Barbier, trata-se de uma questão de sobrevivên­cia da democracia e de nossas identidade­s coletivas. Certo é que, ao desbravar as obras, o leitor terminará, no mínimo, orgulhoso do enorme patrimônio que a humanidade, em seu incessante projeto de espelhar o mundo, já foi capaz de construir.

As biblioteca­s, templos desde a aurora da humanidade dedicados a proteger o conhecimen­to, são o tema dos lançamento­s de dois estudiosos

 ?? FOTOS: WILL PRYCE ?? Esplendor. Biblioteca da Abadia de Admont, na Áustria, construída em 1776 e guardando mais de 70 mil volumes
FOTOS: WILL PRYCE Esplendor. Biblioteca da Abadia de Admont, na Áustria, construída em 1776 e guardando mais de 70 mil volumes
 ??  ?? Monástica. Biblioteca Malatestia­na de Cesena, aberta em 1454
Monástica. Biblioteca Malatestia­na de Cesena, aberta em 1454
 ??  ?? Manuscrito­s. Biblioteca Marciana de Veneza, das maiores da Itália
Manuscrito­s. Biblioteca Marciana de Veneza, das maiores da Itália

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil