UMA JORNADA KAFKIANA
Franz Kafka gostava de rabiscar e desenhar. Em um de seus cadernos de notas, ele esboçou um homem prostrado na cama, talvez projetando sua própria doença terminal e prevendo seu fim próximo. O bloco de notas foi apresentado pela primeira vez ao público na quarta-feira, em Jerusalém. O desenho simboliza um encerramento apropriado, embora sombrio, de uma labiríntica batalha de anos sobre o legado do escritor, um século após sua prematura morte.
O livrinho de notas e outros materiais chegaram recentemente à Biblioteca Nacional de Israel vindos de Zurique, onde eram mantidos em um cofre-forte. Eles são a última parte de um vasto lote de textos e manuscritos do celebrado escritor judeu de fala alemã confiados a um amigo.
A recuperação dessa última porção do arquivo, do cofre de um banco suíço, é a conclusão de mais de uma década de um tortuoso roteiro judiciário dos papéis do escritor, trajetória comparada por muitos à trama de um romance de Kafka; ou de uma disputa, mais terrena, entre Israel e a Alemanha sobre a propriedade desse legado cultural e sua moradia definitiva.
Com sua morte por tuberculose, aos 40 anos, em 1924, Kafka deixou os documentos a cargo do amigo e executor literário, Max Brod.
As dezenas de envelopes de papel-manilha abertos na quarta-feira contêm centenas de documentos, a maior parte já publicada, incluindo uma versão datilografada da angustiada Carta ao Pai, que Brod disse ter sido datilografada pelo próprio Kafka; três versões manuscritas de Cenas de um Casamento no Campo, um de seus primeiros escritos, de 1907, do qual cada versão era mais concisa que a anterior, até que 58 páginas foram reduzidas a cinco; e cartões-postais que Kafka enviou a Max Brod poucas semanas antes de sua morte.
David Blumberg, presidente da Biblioteca Nacional de Israel, disse numa coletiva de imprensa na quarta-feira que “bens culturais tendem a se evaporar se não forem feitos esforços para preservá-los”.
Os papéis de Kafka deverão ser digitalizados e está em andamento a construção de um prédio maior para abrigar o tesouro de posse da biblioteca, disse Blumberg, acrescentando que a intenção é tornar o arquivo acessível ao público de Israel e do exterior. O material que chegou de Zurique vai se juntar a outros documentos do escritor garimpados na Alemanha e em um fétido apartamento de Tel-Aviv que já havia sido ocupado por gatos.
A saga dos papéis começou com Brod voando em 1939 de Praga para Tel-Aviv, no que era então a Palestina ocupada pela Grã-Bretanha. Ele levava consigo uma pasta com obras de Kafka. Relativamente desconhecido em vida, Kafka havia instruído Brod a queimar seus manuscritos, cartas e papéis após sua morte. Desobedecendo às determinações, Brod publicou muitas das obras monumentais (ainda que incompletas) do escritor, incluindo O Processo e O Castelo e garantindo a Kafka a fama póstuma.
Quando Brod morreu, em 1968, ele legou seu Stefan Litt, curador da Biblioteca Nacional de Israel, exibe desenhos de Kafka
arquivo, incluindo os papéis de Kafka, a sua secretária, Esther Hoffe, que guardou o material em seu apartamento de Tel-Aviv. Hoffe vendeu algumas das obras de Kafka, entre elas o manuscrito de O Processo, vendido por US$ 2 milhões em 1988. Quando ela morreu, em 2007, o material ficou com suas duas filhas.
Em 2008, Israel entrou com processo para recuperar o legado, argumentando que o testamento de Brod, de 1948, dizia que o arquivo “deveria ir para um arquivo ou biblioteca na Palestina”. Mais tarde, segundo Israel, Brod teria especificado que o destino dos papéis seria a Universidade Hebraica de Jerusalém (que abriga a Biblioteca Nacional). Em 2016, a Suprema Corte de Israel decidiu que o espólio de Brod, incluindo os textos de Kafka, pertenciam à Biblioteca Nacional.
A contenda envolveu ainda processos na Alemanha, onde a família Hoffe reclamava que alguns manuscritos haviam sido roubados de seu apartamento em Tel-Aviv e postos no mercado. Um tribunal de Zurique manteve a decisão do Supremo de Israel, acrescentando que o conteúdo das caixas em depósito, que estavam na sede do banco UBS, deveria ser destinado a Israel.
Tanto Kafka e como Brod nasceram em Praga, que era então parte do Estado da Boêmia no Império Austro-Húngaro e hoje é capital da República Checa.
Embora os dois escritores participassem do grupo literário conhecido como Círculo de Praga, o governo checo, segundo Blumberg, o presidente da Biblioteca Nacional de Israel, nunca reivindicou a posse do arquivo.
O duradouro debate sobre o destino de direito para o espólio de Kafka ganhou camadas por conta da complexidade da relação de Kafka com o judaísmo e sua aparente ambivalência sobre o sionismo. Ele era um conhecedor da literatura iídiche, considerou se mudar para a Palestina em certo momento e estudou hebraico.
“É interessante que a opinião dos israelenses nesses 12 anos de disputas legais era que, em virtude do judaísmo de Kafka, sua herança cultural pertence de alguma forma a Jerusalém, um lugar que ele nunca visitou”, disse Benjamin Balint, que escreveu em 2018 um livro sobre a saga do arquivo, Kafka’s Last Trial (O Último Processo de Kafka, em tradução livre).
“Ele morreu antes de existir um Estado de Israel”, disse Balint. “Então para os alemães isso era desconcertante.”
Se Brod desacatou mesmo o último pedido de Kafka é ainda outro ponto ambíguo dessa história. De acordo com Brod, Kafka deixou duas notas instruindo que seus papéis fossem queimados após sua morte. Mas essas notas nunca foram encontradas.
“Infelizmente”, disse Stefan Litt, curador da coleção de humanidades da Biblioteca Nacional e arquivista responsável pelo espólio de Max Brod, “nós não sabemos onde essas supostas notas podem estar”.
Em um posfácio que Brod escreveu para O Processo, ele descreve a descoberta de uma nota na escrivaninha de Kafka sob uma pilha de papéis, escrita a tinta e endereçada a ele, instruindo-o a queimar todos os seus manuscritos, cartas e rascunhos, “sem serem lidos e até a última página”.
Uma busca posterior e mais cuidadosa lançou luz sobre outro “papel amarelado e obviamente mais antigo” escrito a lápis e requisitando a mesma coisa, segundo Brod.
Mas ele se recusou a “cometer o ato incendiário” que seu amigo autocrítico demandou, adicionando: “Tenho boas razões para tal”.
O autor de ‘A Metamorfose’ pediu que seus papéis fossem queimados, mas eles passaram por um entrave jurídico digno de um de seus enredos