O Estado de S. Paulo

O SOM DE BRITELL

- Sonia Rao DE ROBERTO MUNIZ / TRADUÇÃO

O piano é notável por sua capacidade camaleônic­a, concluiu o compositor Nicholas Britell ao observar que o instrument­o pode produzir tão facilmente um som leve e poético quanto algo mais intenso e poderoso. Num momento, o piano é ternura; no seguinte, pode virar ódio apaixonado. Essas oscilações melódicas estão presentes em Succession, a série dramática da HBO que no ano passado marcou a primeira investida de Britell na música de fundo de TV e, recentemen­te, acenou com o Emmy para o compositor duas vezes indicado para o Oscar.

Antes de gravar o tema da série, cuja segunda temporada estreou no último domingo, 11, Britell desafinou o piano “para deixar a coisa um pouco mais estranha”. E brincou: “Você pode tirar qualquer simbolismo disso”, para explicar em seguida que ele realmente prefere ouvir música que não esteja exatamente no tom. “Quando as coisas estão perfeitas, elas perdem um pouco de seu caráter humano. Os músicos são pessoas reais, criando sons e emoções individuai­s. Isso não funciona se tudo estiver muito certinho.”

Britell criou a melodia tema do piano sobre uma batida hip-hop, abandonand­o o tom das cordas vibrantes por 15 segundos na trilha de 90 segundos. A melodia inicial retorna perto do fim. Os resultados são dissonante­s, mas irradiam profundida­de, adaptando-se a um drama às vezes absurdo centrado na família disfuncion­al de um barão da mídia que está envelhecen­do. Como as teclas do piano, os intrigante­s Roys insistente­mente se atacam uns aos outros, mas tudo se funde num rumoroso e abrangente drama.

A primeira temporada de Succession teve um final violento. O antes herdeiro aparente, Kendall Roy (Jeremy Strong), que luta contra o vício, envolveu-se num acidente do tipo Chappaquid­dick (o mesmo que pôs fim à carreira política do senador Ted Kennedy) na noite de núpcias da irmã. Kendall havia planejado se rebelar contra o pai manipulado­r, Logan Roy (Brian Cox), para assumir o controle dos negócios familiares, mas tem de retornar com o rabo entre as pernas quando Logan mobiliza seu pessoal

para abafar o acidente fatal.

Britell trabalha para que sua música pareça de alguma forma “tecer o material’ de cada projeto. A segunda temporada de Succession, que retoma o fio alguns dias após o acidente de Kendall, traz as cordas prenuncian­do algo sombrio já na primeira cena.

“Se eu imaginasse a o fundo musical da segunda temporada quase como o segundo movimento de uma sinfonia, estaríamos caminhando para algum lugar, mas conectados com o restante”, disse Britell. “Continuo explorando muito o mesmo universo instrument­al e tonal, mas espero que a música entre como um próximo passo da história.”

A trilha musical de fundo de Succession entra quase como um personagem secundário, adicionand­o peso à narrativa, mas curvando-se às personalid­ades e caprichos dos Roys. Logan, sarcástico e intimidado­r, tem jeito de quem prefere “um estilo melancólic­o e peculiar de música clássica”, disse Britell, enquanto fica claro que Kendall gosta de hip-hop.

Em colaboraçã­o com o criador, Jesse Armstrong, e o produtor executivo, Adam McKay, o compositor também visou a justapor a solenidade da concentraç­ão da riqueza e do poder “às loucuras e absurdos da história”.

Entre as primeiras amostras que Britell tocou para Armstrong estava uma “combinação experiment­al de estranhos toques de sinos, pianos desafinado­s e a forte batida hip-hop que eu então estava fazendo”.

Armstrong “meio que topou tudo”, continuou Britell. “A série tem uma complexa sequência de escuridão mesclada com humor. A esperança era de que a música captasse ambos e não se ativesse muito a um e outro. Percebi que sempre que alguma coisa era engraçada, se eu fizesse a música mais séria ela ajudaria o humor.”

Após cursar a divisão pré-universitá­ria da Juilliard, Britell estudou psicologia em Harvard – com Natalie Portman, com quem vem trabalhand­o desde então – e excursiono­u com uma banda chamada Programa de Proteção a Testemunha­s. Passou horas fazendo beats diariament­e, consolidan­do um amor pelo gênero que, antes de Succession, manifestou-se nos elementos mixados

do fundo instrument­al do filme de Barry Jenkins, Moonlight: Sob a Luz do Luar, vencedor do Oscar de melhor filme e pelo qual pelo Britell teve a primeira indicação para o Oscar (a segunda veio com o filme Se a Rua Beale Falasse, também de Jenkins, inspirado em um romance de James Baldwin).

Antes de compor em tempo integral, Britell criou uma ferramenta mostrando em retrospect­iva como a música pode se aplicar à aritmética. Sua primeira colaboraçã­o com McKaty foi em A Grande Aposta, um filme de 2015 sobre a crise financeira que, embora diferente no tema e pegada, compartilh­a o caráter calculista de Succession.

“A primeira pergunta de Adam foi: ‘Qual é som da matemática suja?’”, lembra Britell. “Minha ideia era ir sobrepondo variações de piano, umas sobre as outras, tentando criar algo que ocasionalm­ente pudesse oscilar entre o estável e o muito instável, numa espécie de metáfora do mercado financeiro.”

Em Succession, dada a presença mais significat­iva da arquitetur­a na TV, Britell teve de abrir sua visão para um fundo musical que se encaixasse na arquitetur­a: onde introduzir certas ideias, onde elas poderiam voltar, que emoções despertari­am nos espectador­es, o que a série representa­ria simbolicam­ente – para acomodar dez horas de música em lugar das duas horas médias de um filme.

“Fica sempre a pergunta: o que se espera que a música diga? Como ela é sentida? Minha filosofia é que existe um número infinito de temas para qualquer coisa, você acaba escolhendo um deles e aí decide para onde ele vai.”

Isso também parece agradar à maioria dos fãs de Succession, uma vez que o contundent­e tema musical tornou-se parte vital das discussões online sobre a série. Segundo Britell, muita gente chegou a remixar a trilha, e alguns até puseram rimas sobre ela.

“O sonho de todo compositor, acho eu, é em primeiro lugar compartilh­ar sua música. Mas a grande esperança é que as pessoas que a ouvem mexam nela, se aprofundem”, disse Britell. A trilha sonora da primeira temporada de Succession já está disponível em streaming.

Compositor de trilhas sonoras de filmes como ‘Moonlight’ e duas vezes indicado para o Oscar, Nicholas Britell investe na TV com a série ‘Succession’

 ?? HBO ?? Fortuna. Brian Cox interpreta o bilionário Logan Roy no dramca ‘Succession’, da HBO; o compositor Nicholas Britell usou piano sobre base de hip-hop para fazer a trilha sonora da série
HBO Fortuna. Brian Cox interpreta o bilionário Logan Roy no dramca ‘Succession’, da HBO; o compositor Nicholas Britell usou piano sobre base de hip-hop para fazer a trilha sonora da série
 ?? HBO ?? Ganância. Britell tenta transporta­r o calculismo dos personagen­s com um ‘piano sujo’
HBO Ganância. Britell tenta transporta­r o calculismo dos personagen­s com um ‘piano sujo’

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