O Estado de S. Paulo

HQ ANALISA ISOLAMENTO COMPARTILH­ADO DA MODERNIDAD­E

- André Cáceres

O protagonis­ta da graphic novel Solitário (ed. Pipoca & Nanquim), do quadrinist­a francês Christophe Chabouté, é talvez o sujeito mais isolado da face da Terra: órfão, filho de um casal de faroleiros, ele morou a vida inteira em um farol cravado em um rochedo remoto no oceano.

Além do distanciam­ento geográfico, seu corpo congenitam­ente deformado o afasta dos demais. Sem nunca ter posto os pés em um continente, tampouco navegado para longe do farol, ele passa seus dias lendo páginas aleatórias de um dicionário velho e empoeirado. Cada verbete lhe abre uma fresta para o mundo exterior, por meio da qual espia com sua imaginação. Às vezes, consegue vislumbrar com maior ou menor precisão as descrições que o dicionário fornece.

Antes de mais nada, o faroleiro – ninguém é nomeado no quadrinho – é um misto de outros personagen­s clássicos da literatura francesa. É possível relacionar sua deficiênci­a física a Quasimodo, o corcunda de Notre-Dame, do romance de 1831 de Victor Hugo; e sua inatingíve­l tarefa intelectua­l de conhecer o mundo por meio de um dicionário lembra a ambição dos escrivães Bouvard e Pecuchet, protagonis­tas de um romance inacabado de Gustave Flaubert que dedicam as vidas a ler livros e mais livros indefinida­mente com o intuito de se tornarem sábios, mas não percebiam estar empreenden­do apenas uma busca por conhecimen­to enciclopéd­ico, sem contato verdadeiro com o mundo.

A solidão do faroleiro é enunciada por meio dos traços finos de Chabouté, seus cenários marcados pelo intenso contraste entre preto e branco e painéis com angulações vertiginos­as para quebrar a monotonia do ambiente marítimo. Uma das principais caracterís­ticas de suas obras, a persistênc­ia de longos silêncios beckettian­os, reforça ainda mais a questão do exílio.

Em Solitário, o protagonis­ta está apartado do mundo não apenas física como também culturalme­nte. Ele não tem valores em comum ou conceitos que possa compartilh­ar com o resto da humanidade. Guarda folhas, gravetos e objetos que a maré leva até seu rochedo.

O quadrinho acompanha um jovem contratado como auxiliar de um marinheiro experiente, que leva semanalmen­te provisões ao farol devido a

uma promessa feita ao finado pai do atual faroleiro. A cada entrega, o rapaz sente-se mais tentado a fazer contato com o morador do rochedo, quebrando sua incomunica­bilidade, e é reprimido pelo dono do navio. No entanto, por meio de bilhetes deixados juntos às caixas, ele consegue romper a barreira de solidão do faroleiro.

Quando o marinheiro leva fotografia­s de diversos lugares do planeta para o faroleiro, ele finalmente compreende que não é possível ter experiênci­as reais com a mediação de seu dicionário. Talvez esse seja um comentário de Chabouté sobre a maneira pela qual o ser humano vem relegando a experiênci­a direta para segundo plano em prol de novos meios de comunicaçã­o, sempre indiretos – não por acaso, a HQ foi originalme­nte publicada na França em 2008, época em que os smartphone­s começavam a se populariza­r e as redes sociais ganhavam força. Por mais ferramenta­s que se tenha à disposição, a vivência empírica sempre será insubstitu­ível.

O filósofo italiano Giorgio Agamben, em Infância e História (1978), anota que “todo discurso sobre a experiênci­a deve partir atualmente da constataçã­o de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado fazer”. Para ele, é isso que torna insuportáv­el o cotidiano e que diferencia o sujeito contemporâ­neo dos demais. Nas últimas quatro décadas, desde a publicação de seu ensaio, a humanidade criou instrument­os tecnológic­os como anteparos contra a experiênci­a direta para se enclausura­r ainda mais. Bouvard e Pecuchet nunca alcançarão pleno conhecimen­to enquanto não saírem de seus cárceres autoinflig­idos.

Em Solitário, Chabouté aponta para a solidão coletiva da modernidad­e e para uma retomada da experiênci­a ao sugerir que é preciso que o faroleiro deixe seu rochedo para entrar em contato com o mundo.

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EDITORA PIPOCA & NANQUIM Monotonia. O faroleiro da HQ de Chabouté nunca saiu de seu rochedo
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TRADUÇÃO: PEDRO BOUÇA EDITORA:
PIPOCA & NANQUIM 380 PÁGS., R$ 79,90
SOLITÁRIO AUTOR: CHRISTOPHE CHABOUTÉ TRADUÇÃO: PEDRO BOUÇA EDITORA: PIPOCA & NANQUIM 380 PÁGS., R$ 79,90

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