O Estado de S. Paulo

CONFLITOS COM A MARCA TRUMP

Estratégia­s erráticas adotadas muitas vezes contra conselhos de assessores têm elevado a instabilid­ade

- CORRESPOND­ENTE / WASHINGTON Beatriz Bulla Luiz Raatz Renata Tranches

Donald Trump foi claro durante a campanha de 2016 ao dizer que privilegia­ria o nacionalis­mo e mudaria a rota da diplomacia. Em dois anos e meio, o presidente americano se retirou de tratados históricos, se indispôs com aliados tradiciona­is como o Canadá e a Alemanha e se aproximou de regimes autoritári­os como Arábia Saudita e Coreia do Norte. Para entender o efeito dessas decisões, o Estado entrevisto­u especialis­tas em alguns dos principais focos de tensão mundial.

“A ordem internacio­nal já mostrava sinais de tensão e ruptura antes de Trump assumir o cargo. No entanto, no passado, os amigos e inimigos dos EUA poderiam esperar do país a defesa dos aliados e do sistema de normas

pós-2.ª Guerra. A abordagem imprevisív­el e desorienta­da de Trump para a política externa enfraquece­u o vetor de estabilida­de. Governos estrangeir­os se envolvem em comportame­ntos provocativ­os, seja na proliferaç­ão nuclear, na degradação ambiental ou na violação dos direitos humanos”, afirma Michael Camilleri, ex-diplomata do governo de Barack Obama e diretor do centro de estudos Rule of Law, do instituto Diálogo Interameri­cano.

Estratégia­s erráticas e adotadas no calor da emoção pelo presidente, muitas vezes em desacordo com o conselho de assessores, são apontadas como causa para mais instabilid­ade. Dois exemplos atuais são a escalada de tensão no Irã e na Caxemira.

“É verdade que o papel dos EUA está diferente no governo Trump do que tem sido especialme­nte desde o final da Guerra Fria. É uma fase na qual os EUA estão recuando. Não acho que a influência americana esteja decaindo, mas que os EUA estão deixando de querer ter influência em muitas coisas, o que carrega uma série de riscos”, afirma Fernando Cutz, ex-conselheir­o da Casa Branca nos governos Obama e Trump. Consultor no Cohen Group, ele cita como exemplo o silêncio sobre violações de direitos em Hong Kong.

“Perdemos a credibilid­ade no mundo inteiro em termos de sermos vistos como esse grande líder que sempre defende direitos humanos e democracia. Corremos o risco de permitir a desestabil­ização, de dar um passo rumo a uma direção errada”, afirma Cutz. O governo George W. Bush também viveu tensões com aliados próximos, como o estremecim­ento nas relações com a França diante da oposição clara dos franceses à Guerra do Iraque. Segundo Cutz, no entanto, a política de Bush não foi “nem de perto” como a de Trump.

Sob Trump, os EUA saíram do Acordo Climático de Paris, do acordo nuclear com o Irã, do antigo Nafta, do TPP (o acordo de países do pacífico), congelaram a reaproxima­ção com Cuba desenhada por Obama, esvaziaram o funcioname­nto de um dos órgãos da OMC e passaram se mostrar insatisfei­tos com a ONU e com a Otan. No caso da Coreia do Norte, a aproximaçã­o com Kim Jong-un e a insistênci­a do americano em propagande­ar o feito como um ato pela paz mundial geram preocupaçã­o sobre o quanto Washington baixará a guarda diante de testes de mísseis norte-coreanos.

Perspectiv­a.

Com Trump ou sem Trump na Casa Branca a partir de 2020, a reorientaç­ão da política externa americana pode já ter deixado espaço para efeitos indesejado­s. “Fazemos acordos de paz com Irã e Cuba, aí chega um novo time e os destrói. Fazemos acordos com aliados e depois tomamos outra direção. Os governos gostam de estabilida­de, há consequênc­ias para além do tempo que Trump for o presidente”, afirma Cutz. “Os eventos mundiais provavelme­nte ficarão mais turbulento­s no curto prazo. E, mesmo que uma derrota de Trump na eleição do próximo ano restaure um papel mais previsível dos EUA no mundo, há tendências maiores de instabilid­ade na governança global que durarão além de seu mandato”, afirma Camilleri.

Uma das caracterís­ticas da nova política americana, destaca Peter Hakim, presidente do Diálogo Interameri­cano, é tomar um lado, em vez de tentar trazer os dois lados à mesa para negociar. Foi assim, por exemplo, quando Trump anunciou que transferir­ia a embaixada em Israel para Jerusalém.

A maior tensão existente hoje, afirma Hakim, é a rivalidade entre EUA e China. “Os EUA estão voltando as costas ao multilater­alismo e a China está ascendendo muito rapidament­e, com importante papel econômico e militar, crescente papel político, em ciência e em tecnologia. É um competidor que os EUA não possuem desde que a União Soviética colapsou”, afirma Hakim.

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