INSTABILIDADE MUNDIAL
● O presidente americano mudou o papel dos EUA em alguns dos principais focos de tensão no mundo. Em alguns casos, Washington abriu mão do papel de protagonista. Em outros, o reforçou
Ogoverno Obama con- denou, ao lado de aliados europeus, a anexação pela Rússia do terri- tório da Crimeia em 2014. Eu- ropeus alinhados com o en- tão governo Obama impuse- ram sanções econômicas a membros do governo russo. Trump já disse que a anexa- ção foi culpa de seu anteces- sor e, até onde ele sabe, as pessoas da Crimeia prefe- rem ficar com a Rússia.
Desde 2014, mais de 13 mil ucranianos já morreram no mais longo conflito na Euro- pa desde a 2.ª Guerra. Segun- do o especialista em Leste Eu- ropeu da Universidade do Ala- bama (em Birmingham) George Liber, há mensagens dúbias. As instituições ameri- canas e parte do governo de- ram claro apoio à integridade territorial da Ucrânia. Mas Trump nunca ofereceu apoio público. “Ele acredita em grandes poderes políticos, não em princípios democráti- cos. Ele apoia grandes países, como a Rússia e a China, em vez de Estados pequenos e fra- cos”, afirma Liber.
A particularidade no caso da Ucrânia é que há mais con- tinuidade à política de Oba- ma do que em outros cená- rios, incluindo a venda de ar- mamento para os independentistas em Kiev. Mas não há ações para encerrar o con- flito. Para Liber, os esforços de Moscou para interferir nas eleições e favorecer Trump buscavam fazer com que o republicano levantasse as sanções impostas à Rússia. Trump tentou fazer isso, mas o Congresso não permitiu.
Assim que chegou à Casa Branca, Trump retirou os EUA do acordo nuclear fechado entre potências in- ternacionais e o Irã sobre seu programa nuclear, mas não apre- sentou uma alternativa. A Euro- pa tenta manter o pacto vivo.
A estratégia de Trump, segun- do o analista Aaron David Mil- ler, era tentar encontrar razões políticas para reformar o acor- do, mas ele subestimou o grau de resposta dos iranianos ao retorno das sanções dos EUA.
A tensão tem repercutido em um ponto do Oriente Médio, no Estreito de Ormuz, por onde passa diariamente ao menos um quinto do petróleo bruto do mundo. O Irã reteve petrolei- ros e navios de várias nacionali- dades, incluindo britânica. Lon- dres informou que se juntará aos EUA na missão de proteger embarcações em Ormuz.
Para Miller, o americano está em uma posição na qual leva adiante sua palavra de renego- ciar ou vai à guerra para mudan- ça de regime. No ápice das tensões, o presidente cancelou “dez minutos antes” um ataque militar ao Irã, segundo ele, após saber que ao menos 150 pessoas morreriam. O objetivo era punir o país por ter derrubado um dro- ne americano, que Teerã alega ter invadido seu espaço aéreo.
“Nesse momento, estamos à deriva e, se tivermos sorte, ele (Trump) evitará um confronto militar”, afirmou Miller, ex-con- selheiro do Departamento de Estado para Oriente Médio. Segundo ele, retirar os EUA do “fa- lho, mas funcional” pacto com o Irã foi o triunfo do ego e da política doméstica sobre os inte- resses americanos.
Trump disse há um mês que a Índia – de quem se aproximou nos últimos anos – pediu ajuda para mediar a questão da Caxemira, disputada por indianos e paquistaneses há pelo menos 70 anos. O governo indiano, que insiste em negocia- ção direta com o Paquistão, dis- se que não havia feito tal pedido e três semanas depois mudou o status da região, diminuindo sua autonomia.
O governo de Islamabad, que defende uma mediação interna- cional sobre a região, viu que tal- vez a aliança entre indianos e americanos não fosse tão forte assim, como descreveu Jamsheed Choksy, presidente do Departamento de Estudos da Eurásia Central da Universida- de de Indiana. Para analistas na Índia, não houve dúvida de que a estranha declaração de Trump fez acelerar uma decisão do go- verno indiano de remover o sta- tus especial da Caxemira, território de maioria muçulmana no Himalaia.
As conversações entre o go- verno Trump e a milícia Taleban no Afeganistão também contri- buíram para o agravamento das tensões entre a Índia e o Paquis- tão. Logo após iniciadas, o gover- no de Washington disse que reti- raria as tropas americanas do Afeganistão. Com isso, as forças paquistanesas que têm combati- do na fronteira com o Afeganis- tão, para a preocupação da Ín- dia, agora poderão reforçar a pre- sença militar na Caxemira.
“As administrações (america- nas) anteriores tentavam encon- trar um equilíbrio, garantir que a hostilidade entre paquistane- ses e indianos se mantivesse bai- xa”, afirma Choksy.
EUA, Coreia do Sul e Ja- pão pressionavam a Coreia do Norte a pôr fim a seu programa nuclear, enquan- to a China apoiava, com ressal- vas, Pyongyang. As negociações entre Trump e Kim Jong-un se- mearam dúvidas entre os ou- tros atores do processo, e a Co- reia do Norte ampliou o progra- ma nuclear.
Para Bruce Bennet, analista de Defesa do Instituto Rand, a aproximação entre EUA e Co- reia do Norte é inédita e isso le- vou a discussões inéditas. O pro- blema é que essas discussões não renderam resultados con- cretos. “Os norte-coreanos não entregaram nem uma ogiva e provavelmente aumentaram seu potencial nuclear em 50%”, diz. Alguns observadores do programa nuclear da Coreia do Norte avaliam que Pyongyang teme menos o poderio americano com Trump.
Analistas avaliam ainda que a imprevisibilidade da diploma- cia de Trump na Ásia pode ser particularmente catastrófica na Coreia do Norte por causa da China. Interessada na desnu- clearização da Península Corea- na, Pequim vê com desconfian- ça a guerra comercial de Trump e isso pode dificultar a mediação chinesa. “A prioridade da China é a estabilidade das Coreias. A China está ansiosa para resolver a questão, mas até antes de Trump costumava deixar a pres- são para os EUA”, explica Ben- net. “A China tornou-se dúbia na questão coreana, pois ao mes- mo tempo que teme algum ato impensado de norte-coreanos e americanos, não pode permitir a projeção americana na penín- sula via Coreia do Sul.”
Em 2014, quando os mora- dores de Hong Kong foram às ruas pela primeira vez contra Pequim, os EUA se colocaram do lado dos mani- festantes e pediram respeito aos direitos humanos. Nos pro- testos de 2019, Trump manteve distância dos atos, o que foi in- terpretado em Pequim como um sinal verde para a repressão.
Envolvida com a guerra co- mercial com os EUA, a China tem tido dificuldade em avaliar a reação americana na crise de Hong Kong. Segundo Ngok Ma, professor da Universidade de Hong Kong, o território não é uma prioridade para Trump. “O Congresso tem exercido uma pressão mais importante nesse sentido do que o presi- dente, que não tem tratado o tema como prioridade por cau- sa da guerra comercial”, disse.
Nas últimas semanas, Trump tratou os protestos como “dis- túrbios” e compartilhou mate- rial de inteligência dizendo que a China mobilizava tropas per- to do território e ofereceu me- diação ao presidente Xi Jinping. O desdém pela crise em Hong Kong irritou líderes do Congres- so em ambos os partidos.
Para Michael Pillsbury, do Hudson Institute, Trump vê as violações de direitos humanos como uma distração para seu fo- co na relação econômica com Pequim. “O foco do presidente é alterar o modelo econômico chinês”, disse. Segundo Tho- mas Wright, do Instituto Brookings, a atitude de Trump em relação a Hong Kong é arris- cada. “Ele dá sinal verde para Pequim e nas entrelinhas diz que a questão é puramente in- terna”, afirmou.
Os EUA apoiavam tacitamente Taiwan, apesar de oficialmente reconhecerem a política de “uma só China” desde os anos 1970. A venda de armas para Taiwan e as tensões no Mar do Sul da China aumentaram, provocando críticas de Pequim. Em 2017, os EUA venderam a Taiwan mais de US$ 1,4 bilhão em mísseis e sistemas antiaéreos. No ano seguinte, foram mais US$ 300 milhões em peças de reposição. Neste ano, o governo negocia um novo pacote de US$ 2,2 bilhões que inclui a venda de caças F-16.
A China disse que a venda é uma ameaça à integridade territorial do país, que considera Taiwan uma província rebelde. Os EUA autorizaram operações para “garantir a liberdade de navegação” no Mar do Sul da China, em outra manobra que irritou os chineses. A aproximação com Taiwan foi possível graças à eleição da presidente Tsai Ing-wen, em 2016. Em dezembro desse mesmo ano, pouco depois de ter sido eleito, Trump irritou os chineses ao conversar pelo telefone com a presidente taiwanesa. Desde a retomada de relações entre Washington e Pequim, ambos se pautam pelo princípio de “uma só China”, pelo qual os americanos não reconhecem Taiwan. “Taiwan usou o fato de Trump ver a China como um rival em potencial para se aproximar”, disse Wang Kung-yi, da Universidade de Cultura Chinesa de Taipé ao South China Morning Post.