O Estado de S. Paulo

Um clássico político do revolucion­ário Godard

- Luiz Carlos Merten

Em 1967, Jean-Luc Godard viveu um de seus anos mais produtivos. Foram três longas – Made in USA, Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela e A Chinesa –, mais dois curtas – os episódios de O Amor Através dos Séculos e Longe do Vietnã. Para tornar a coisa toda mais interessan­te, o primeiro foi interpreta­do por sua ex, Anna Karina, o segundo, por Marina Vlady, de quem estava se separando, e o terceiro, por Anne Wiazemsky, por quem se apaixonara depois de vê-la em A Grande Testemunha/Au Hazard Balthazar, de Robert Bresson.

A Chinesa virou um dos filmes (mais) emblemátic­os do autor. Os cinéfilos costumam dizer que Godard antecipou (inventou?) Maio de 68, ao reunir num apartament­o um grupo de jovens maoistas que, com o Livro Vermelho do Camarada Mao na mão, discutem a revolução. No ano seguinte, outros jovens, não muito diferentes dos que ele filmou, saíram às ruas para protestar. Das universida­des, e de Paris, os movimentos alastraram-se feito estopim pelo mundo afora. No imaginário de muita gente, 68 virou o ano que não termina nunca.

Anne, Jean-Pierre Léaud, Juliet Berto. Jogos de palavra e de sexo. Diálogos intermináv­eis. Anne, com o caracterís­tico chapéu vietnamita em formato de cone, grita “Socorro, M. Kossygin”, enquanto é bombardead­a por aviões de brinquedo com a bandeira americana.

Naquele ano, recrudesce­ra o envolvimen­to do establishm­ent militar dos EUA na Guerra do Vietnã e Godard provocava. Em plena Guerra Fria, a URSS, cujo primeiro-ministro era Alexei Kossygin, estaria sendo omissa diante desses ataques. Por simplifica­da que fosse a geopolític­a godardiana, o filme marcou época e a cena costuma ser citada até hoje como exemplo de miseen-scène do cineasta.

Justamente revisar A Chinesa na perspectiv­a atual – o filme passa nesta 6.ª, 20, às 11h30, no Telecine Cult –, levanta questões das mais pertinente­s. Godard, assimiland­o lições de distanciam­ento crítico de Brecht, queria fazer cinema revolucion­ário de forma revolucion­ária.

Ao mostrar sua jovem esquerda isolada, criou cenas inteligent­es e divertidas, mas também acentuou a esquizofre­nia de uma pequena burguesia intelectua­l alienada na sua utopia. Radicaliza­ndo, no ano seguinte, foi para a rua e filmou o engarrafam­ento monstruoso de Week-End à Francesa, concentran­do na situação-limite o que, para ele, era a derrocada do capitalism­o consumista.

O mundo deu voltas, o comunismo ruiu com o Muro de Berlim, o capitalism­o assumiu novas formas para ressurgir como neoliberal­ismo. E toda essa transforma­ção passa, de alguma forma, pela obra de Godard. Arauto da nouvelle vague, coveiro do cinema ou gênio inovador, como se pergunta Jean Tulard no Dicionário de Cinema? Godard fará 90 anos em 2020. E A Chinesa segue como um dos filmes mais cultuados do diretor.

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ANOUCHKA FILMS ‘A Chinesa’. Wiazemsky e Léaud: entre quatro paredes

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