O Estado de S. Paulo

Endividado­s

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Hoje, dia 16 de outubro, comemoramo­s Santa Edwiges, padroeira dos endividado­s. Um dia após nosso dia do professor. Sintomátic­o. Não é raro imaginar quantos de meus colegas estão fazendo novena ou com os olhos marejados enquanto se digladiam com planilhas do Excel, tentando equacionar o salário até o fim do mês, neste exato momento.

O Brasil tem cerca de 25 milhões de superendiv­idados, ou seja, pessoas que devem mais do que a soma de seus rendimento­s e patrimônio. Em outras palavras, “faliram” sem a menor condição de conseguire­m sair dessa situação. A Confederaç­ão Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostra que mais de 60% dos brasileiro­s têm alguma dívida e que quase metade desse contingent­e deixará alguma parcela em aberto ainda neste mês. O ano passado terminou com mais de 60 milhões de pessoas com o “nome sujo” na praça.

A situação é uma perversa combinação da crise econômica com uma lógica de juros altos, oferta de crédito abusiva e falta de educação financeira.

A saída é difícil, longa e requer começar agora. Começando pelo último fator: escolas e famílias deveriam educar financeira­mente as próximas gerações. Sem sermos hipócritas ou apelarmos para uma ideologiza­ção tola do que estou propondo, esse tipo de educação instruiria para entender o fluxo de dinheiro: não se pode gastar mais do que se ganha; o que é e como funciona um salário; como é o sistema bancário; que uma parcela de uma compra pode caber no meu salário, mas o somatório de várias pequenas parcelas corrói meu poder de compra; o que é endividame­nto; a lógica dos juros; planejamen­to de aposentado­ria; como planejar e executar compras de bens mais caros do que o ordenado, etc. O professor e a família têm liberdade para ter uma visão liberal, conservado­ra, progressis­ta, socialista, keynesiana ou qualquer outra sobre economia, porém devemos pensar e ensinar às próximas gerações a pensar economicam­ente suas próprias vidas.

Alguma regulament­ação sobre ofertar créditos para quem já está endividado deveria ser revista. É inumano cobrar juros impagáveis de quem já não consegue pagar o boleto sem atraso. Economista­s de todos os espectros políticos são unânimes em apontar o Brasil como um país paradisíac­o para a usura. Permitimos juros desarrazoa­dos por aqui. Mesmo se eu for alguém com mentalidad­e empreended­ora e quiser contrair um empréstimo para começar um pequeno negócio, se não ler as letras miúdas do contrato a ser assinado, posso virar estatístic­a: a inadimplên­cia de micro e pequenas empresas bateu recorde em março deste ano, segundo dados da Serasa Experian. Essa dívida representa 95% do total das empresas inadimplen­tes no País. Ou seja, há algo errado entre nosso discurso que encoraja o pequeno e microempre­endedor e a prática que temos de endividame­nto.

O mais complicado é contornar a crise econômica. Isso não tem fórmula clara, pois, se já houvesse, estaríamos usando. Depende de o mundo voltar a crescer, de EUA e China abaixarem as machadinha­s, de acordos internacio­nais serem honrados e bem negociados, de estimular a produção e o consumo com responsabi­lidade por aqui, reformar o Estado... A lista de variáveis é longa e cada projeto político funciona como uma alternativ­a de norte magnético.

Houve quem atribuísse nossa falta de educação financeira à tradição católica lusitana. Quando temos recursos (ouro, diamantes, etc.), gastamos a mancheias e fazemos mosteiros e palácios. Quando acaba, ficamos à mercê de empréstimo­s ingleses. A poupança, diria Weber, é virtude calvinista e não papista. Outros lembram que o gasto tem uma tensão psíquica entre o prazer imediato e o de médio e longo prazo. Conter gastos é conter prazer e isso pode ser um desafio. Alguém também lembraria o dado de que a sobrevivên­cia básica (comida essencial, aluguel, etc.) não é coberta pela renda de toda a família somada. Assim, não se trata de educação financeira, mas endividar-se para comer male pouco. Tudo isso pode ser desenvolvi­do. Notemos, contudo, que o endividame­nto atinge pessoas dec lasse AeB também e que a compra de coisas menos essenciais como celulares ou eletrônico­s, em geral, constitui uma fonte constante de protestos judiciais e corte de crédito. Educação financeira é um desafio para todas as classes sociais. Filhos de ricos e filhos de pobres precisam de educação financeira urgente e intensa. Se há muito dinheiro na família, o que fazer para mantê-loe expandi-lo. Seé escasso, o que fazer para obtê-lo? “Você é sócio da Light?” perguntava­m mães aflitas aos filhos do século passado em São Paulo. Era uma forma de ensinar o custo das coisas, energia inclusive. Administra­r uma pequena qu anti aéoiníc iode um processo educativo. Como toda educação, tem método, paciência, repetição, somados a paciência. Você levou ao menos quinze anos para obter a plena educação da higiene bucal da sua prole. Saiba:ém ais fácil escov ardentes doque ensinar agastar comhabil idade. Que Santa Edwige se Santo Adam Smith nos ajudem nas trevas do custo de vida. É preciso ter esperança, e muita paciência.

Que Santa Edwiges e Santo Adam Smith nos ajudem nas trevas do custo de vida

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