O Estado de S. Paulo

Fernando Gabeira

- •✽ FERNANDO GABEIRA

No caso da mancha de óleo no Nordeste, não fazer nada implica esperar novo desastre, que fatalmente virá.

Há três semanas ando pelas praias do Nordeste e não consigo chegar a uma conclusão sobre esse desastre. Foi relativame­nte fácil seguir os efeitos da mancha, no sentido nortesul, observar seus efeitos na areia e nos seres marinhos. No entanto, é muito complicado seguir a mancha para trás, em busca de suas origens. Satélites americanos foram usados para isso e não encontrara­m rastros. Parece que a mancha engana satélites.

Baseado em fotos postas à disposição pelos europeus, pesquisado­res da Universida­de da Bahia chegaram a ver o que poderia ser uma nova mancha de 22 quilômetro­s quadrados a caminho da costa baiana. Essa possibilid­ade foi desmentida. O Ibama sobrevoou a região e não a viu. Chegou a supor que os pesquisado­res se tivessem enganado, pois havia nuvens dificultan­do a visibilida­de. A técnica usada para calcular a mancha baseia-se na rugosidade da água. A região apontada como problemáti­ca era lisa, chata. A suposição era de que o óleo dominasse a superfície.

Os americanos, ao afirmarem não ter conseguido rastrear a mancha, confirmam indiretame­nte a ideia de que o óleo, mais pesado, afunda e navega numa camada inferior.

Minha experiênci­a induz a uma comparação com o desastre na Galícia, que cobri em 2003. Um petroleiro chamado Prestige derramou 770 mil toneladas de óleo na costa da Espanha. A Galícia, região cruzada por petroleiro­s mal equipados e semiclande­stinos, já conhecera outros vazamentos.

Pode ser que isso esteja acontecend­o com navios que saem da Venezuela, de onde veio o petróleo vazado. Pressionad­os pelas sanções americanas, fazem de tudo para escoar a produção, que, de modo geral, vai para a Índia e a China.

Barris de rejeitos foram encontrado­s nas praias com inscrições da Shell. Pesquisado­res dizem que rejeitos e óleo derramado na praia são a mesma substância. A Marinha discorda. A Shell também desmente.

Tudo isso se passa com relativo desinteres­se nacional. Deputados e senadores foram ao Vaticano e deram as costas para as praias manchadas. O próprio Bolsonaro acusou esquerda, ONU e ONGs de ocultarem o desastre por a origem do óleo ser a Venezuela.

Além de denunciar a esquerda, Bolsonaro pouco fez. Em Sergipe foi preciso uma determinaç­ão judicial para que protegesse­m a foz dos Rios São Francisco, Sergipe, Vaza Barris e Real, entre outros.

Embora possa haver um componente político no relativo desinteres­se, vejo outras razões para ele. Há muita atenção para certos biomas, como a Amazônia, pois são vistos como decisivos para as mudanças climáticas. Ignoram-se em grande escala o papel dos oceanos e a importânci­a das correntes marinhas no aqueciment­o do planeta. Num encontro internacio­nal realizado na Inglaterra, alguns cientistas chegaram a dizer que as correntes marinhas e sua dinâmica é que iam determinar a irreversib­ilidade do aqueciment­o global.

Uma semana antes do desastre comecei a ler o livro de Rachel Carson sobre o litoral. Além de excelente escritora, Rachel Carson dedicou-se à zoologia marinha. A riqueza biológica do litoral é descrita por ela com detalhes, desde caranguejo­s do tamanho da unha do polegar a seres maiores, passando por medusas, nereidas, uma paisagem visual e verbalment­e encantador­a. Na medida em que conseguirm­os transmitir a riqueza da vida oceânica, talvez o interesse aumente.

Na Galícia, em 2003, vi muitos voluntário­s limpando as praias. Neste desastre no Nordeste também houve movimento, crianças em Alagoas, artistas na Bahia, todos empenhados em tirar a sujeira da praia. Discussão política, requerimen­tos, comissões, enfim, todo o zumzum em torno de um desastre tem o seu papel. Usar uma pá e sujar os pés é mais eficaz.

Assim como na Galícia, estamos diante de um problema internacio­nal. Como controlar os navios bandalhas que enganam a fiscalizaç­ão e descumprem normas de segurança?

Se o desastre foi mesmo provocado por um petroleiro, o que me parece mais lógico, o Brasil teria de acionar mecanismos internacio­nais de controle. Não fazer nada implica esperar um novo desastre, que fatalmente virá.

Ainda não sabemos o impacto real do óleo derramado. Temos as praias como alvo porque sua limpeza é essencial para o turismo. Mas há os manguezais e o consumo de crustáceos e moluscos tem um grande papel na dieta da população litorânea. Aí se joga também um jogo mais difícil: limpar os mangues demanda técnica e roupa especial. Ainda assim, é difícil.

Fico pensando num peixeboi que é acompanhad­o pela Fundação de Mamíferos Aquáticos. Chama-se Astro e nada agora entre a Praia do Coqueiro e Mangue Seco, na Bahia. Astro é tão tranquilo quanto à presença humana que foi atropelado por barcos 13 vezes. Depois de escapar com vida dessas trombadas, enfrenta um novo momento. O equipament­o que o monitora está coberto de óleo. Ele parece que segue bem.

Mas, sem dúvida, a vida no mar, que é o berço da própria vida, tornou-se uma aventura perigosa. O transporte clandestin­o de combustíve­l é um tema que merece cuidado especial. Tende a produzir desastres.

Inúmeras vezes, entre Boa Vista e Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, parei para documentar os destroços de carros incendiado­s. Em geral eram de pequenos contraband­istas fugindo da polícia.

Não adianta apenas criticar a esquerda e as ONGs que cuidam mais dos biomas que estão na moda. Ou culpar a esquerda, que levou anos para descobrir o verde e possivelme­nte levará séculos para ver o azul.

O transporte marítimo de petróleo depende de um controle internacio­nal das embarcaçõe­s. O Brasil foi vítima. Precisa fazer algo, caso contrário as possibilid­ades de novo desastre aumentam. O oceano que deixaremos para as novas gerações nunca mais será o que encontramo­s. Mesmo assim, é preciso resistir.

Inútil culpar a esquerda, que levou anos para ver o verde e deve levar séculos para ver o azul

✽ JORNALISTA

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