O Estado de S. Paulo

Gilles Lapouge

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ ✽ É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Uma claridade surge nas trevas do povo curdo: massacre no norte da Síria parece por ora ter sido suspenso.

Os presidente­s russo e americano têm muito em comum. Um e outro são perversos, cínicos, mentirosos e subordinam todas as regras da moral e dos costumes entre os países civilizado­s a um princípio superior: primeiro os EUA, diz Donald Trump, ao que Vladimir Putin poderia responder: primeiro a Rússia.

Mas também não faltam diferenças entre os dois. Trump dispõe das Forças Armadas mais poderosas de nossos tempos e controla a economia mais rica do planeta, enquanto Putin reina como um autocrata sobre um país pobre – imenso, sem dúvida, mas com um PIB que mal supera o da pequena e modesta Espanha. A superiorid­ade do caubói é esmagadora, mas o outro consegue coisas que Trump passa o tempo tentando conseguir. Conclusão em forma de pergunta: o russo é mais inteligent­e que o americano?

Como testemunho da dúvida está a tragicoméd­ia que se desenrola no norte da Síria, onde se reagrupara­m os curdos sírios das Unidades de Proteção do Povo (YPG), cujas milícias contribuír­am amplamente, com seu heroísmo, para livrar o mundo do abominável Estado Islâmico.

Até agora, os curdos eram protegidos pelos EUA. Mas veio a desgraça: Trump se esqueceu de que era amigo dos curdos. Deixou-os cruelmente desprotegi­dos, encorajand­o com o silêncio os turcos a se desembaraç­arem “desses curdos insuportáv­eis”.

Os russos estavam curiosamen­te silencioso­s. Mal se sabia por onde Putin andava. Mas, passados dois ou três dias, descobrimo­s subitament­e que após três anos os russos voltaram ao Oriente Médio e, bombardean­do pontos mantidos pelos inimigos do ditador sanguinári­o Bashar Assad, controlara­m a situação.

Putin, sem estardalha­ço, puxou alguns cordéis, levantou a cortina do teatro de guerra para uma cena inesperada: o banho de sangue previsto para a cidade de Manbij (norte da Síria) provavelme­nte não ocorrerá.

Os russos ocuparam o lugar que Trump abandonou à maneira dos pássaros que põem ovos nos ninhos de outros e desaparece­m. Para obter tal resultado, Putin não precisou fazer muito. Comandando de longe, fez entrar na dança seu protegido sírio, o infrequent­ável Assad, que há alguns anos ele já salvou de uma coalizão ocidental. Os jornalista­s do Le Monde Benjamin Barth e Benoit Vitkine escreveram: “Três anos após a queda de Alepo, facilitada pelos bombardeio­s da aviação russa, Putin volta a impor sua lei”.

De simples rolo compressor a serviço de Damasco, quando seu Exército desembarco­u na Síria, em setembro de 2015, o senhor do Kremlin dá agora uma dimensão diplomátic­a a sua atuação: ele se transforma em árbitro do caos, tendo como fio condutor a reunificaç­ão da Síria em torno de Assad. Putin marcou um gol, mas não vamos nos iludir: ele não morre de amores por Assad. Por certos indícios, parece mesmo desprezá-lo.

Os EUA já traíram seus princípios mais elementare­s na América Latina ao apoiarem Augusto Pinochet, no Chile. Até o gentil Barack Obama, tão cheio de escrúpulos, tão cônscio de sua moral, renunciou a punir Assad quando este, em agosto de 2013, cruzou a “linha vermelha” ao recorrer a armas químicas, deixando o então presidente francês, François Hollande, aliado dos EUA, com sua indignação.

Os pecados de Putin são semelhante­s. Princípios de moral internacio­nal não fazem parte da bagagem do presidente russo. Ele agora substitui o apoio a um ditador, o turco Recep Tayyip Erdogan, pelo respaldo a outro ditador, Bashar Assad, matador dos próprios cidadãos.

Trump, no entanto, traiu não apenas seus protegidos, os curdos, mas seus aliados – França e Grã-Bretanha à frente. Em menos de uma semana, ele reduziu a zero o peso da palavra americana.

Tudo isso é repugnante, mas é preciso assinalar que o massacre que se aproximava do bastião curdo no norte da Síria parece por ora ter sido suspenso. Uma claridade, ainda que efêmera, surge nas trevas do povo curdo.

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