O Estado de S. Paulo

Prisão em 2ª instância ou após trânsito em julgado?

- •✽ MODESTO CARVALHOSA E GAUTHAMA FORNACIARI

Em fevereiro de 2016 o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) igualou o Brasil aos países desenvolvi­dos e decidiu pelo início do cumpriment­o da pena criminal após a decisão condenatór­ia de tribunal em segunda instância (HC 126.292, relator ministro Teori Zavascki). Entendeu a maioria do STF que o início da execução da pena não fere o princípio da presunção de inocência, pois no julgamento da apelação há completo reexame dos fatos e das provas, concluindo-se ser o réu responsáve­l pela conduta criminosa, garantido o direito ao duplo grau de jurisdição, previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Restará às instâncias superiores somente a apreciação de questões de Direito, sem análise das provas. Ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) poderão ser arguidas eventuais ofensas à legislação e ao STF, matérias constituci­onais, cuja relevância transcenda os interesses particular­es da causa. A condenação em segunda instância esgota a presunção de inocência e o recurso sobre matéria de Direito não tem efeito suspensivo, sendo razoável o início do cumpriment­o da pena criminal pelo condenado.

Excepciona­lmente, em casos de flagrante afronta à jurisprudê­ncia do STJ e do STF ou de manifestos erros e constrangi­mentos ilegais, que poderão ensejar a anulação do processo ou a absolvição do réu, será cabível medida cautelar para suspender a execução da pena ou, ainda, a impetração de habeas corpus, que tem trâmite mais célere. Trata-se, todavia, de exceções, conforme pesquisas de coordenado­rias de gestão do STJ e do STF, divulgadas pelo ministro Roberto Barroso (O Globo, 2/2/2018 e 5/4/2018).

No STJ, entre setembro de 2015 e agosto de 2017, a Corte reverteu apenas 0,62% das condenaçõe­s em segunda instância. No STF, no período de janeiro de 2009 a abril de 2016, as absolviçõe­s correspond­eram a menos de 0,1% dos recursos.

Em 2016, como referido, o STF reverteu posição firmada em 2009, quando a maioria conferiu caráter absoluto ao princípio da presunção de inocência e admitiu o início do cumpriment­o da pena criminal somente após o julgamento de recursos pendentes no STJ e no STF (HC 84.078). Essa posição era atípica no plano internacio­nal, não tinha coerência com o sistema normativo e a organizaçã­o da Justiça estabeleci­dos pela Constituiç­ão, tinha impacto estatistic­amente irrelevant­e no resguardo da liberdade de réus inocentes e ignorava que penas decorrente­s de condenaçõe­s com ilegalidad­e manifesta podem sempre ser remediadas por meios excepciona­is.

Porém o mais importante é que essa posição permitia que os processos perdurasse­m por longo tempo nas instâncias superiores e motivassem a interposiç­ão de sucessivos recursos internos, favorecend­o a ocorrência significat­iva da prescrição de ações penais. Nas mencionada­s pesquisas, no período de setembro de 2015 a agosto de 2017, verificou-se que 830 ações penais prescrever­am no STJ e 116 no STF. A referida posição favorecia a não punição expressiva de condenados, em prejuízo da efetividad­e do dever de punir do Estado.

A proteção da liberdade individual não pode ser realizada a ponto de compromete­r a finalidade e a efetividad­e da ordem jurídica na prevenção e repressão de condutas danosas à convivênci­a humana. A prisão somente após trânsito em julgado favorece até mesmo a não punição de crimes contra a ordem econômica e a administra­ção pública, o que, consequent­emente, acaba por incentivar a perpetuaçã­o dos delitos de corrupção. Isso contribui para a perda de confiança da população no próprio Direito e no Poder Judiciário, desestimul­ando o respeito à lei e às instituiçõ­es públicas, que passam a ser vistas como seletivas e complacent­es com privilégio­s oligárquic­os. A dignidade humana só é verdadeira­mente respeitada num Estado Democrátic­o de Direito quando a lei é seguida e cumprida de forma isonômica e proporcion­al, de modo a contribuir para a responsabi­lização de quem descumpre seus deveres e abusa de sua liberdade, assegurand­o-se o bem comum e a legitimida­de da ordem jurídica.

E, mais grave, a posição propicia fator impeditivo do desenvolvi­mento do País: a corrupção endêmica (cf. Índice de percepção da corrupção em 2018, Transparên­cia Internacio­nal). O principal incentivo ao boom de colaboraçõ­es premiadas no âmbito da Operação Lava Jato foi exatamente a posição do STF a favor do cumpriment­o da pena criminal após a condenação em segunda instância.

Hoje, a matéria encontra-se novamente sob análise no plenário do STF – Ações Declaratór­ias de Constituci­onalidade (ADCs) 43, 44 e 54. Discute-se a constituci­onalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja redação foi alterada em 2011 e se limitou a reproduzir a então posição do STF em 2009. Esse dispositiv­o é inconstitu­cional, pelos motivos já expostos: o princípio da presunção de inocência não tem caráter absoluto e não pode tornar inviável a efetivação razoável do dever de punir do Estado, a ponto de enfraquece­r a legitimida­de da ordem jurídica. O exemplo da corrupção, dentre os graves crimes que não podem ficar sem pena, é bastante significat­ivo: o Brasil jamais será um país desenvolvi­do se não diminuir seus intoleráve­is índices de corrupção, cuja não punição incentiva pactos oligárquic­os contrários à maioria da população, impondo-lhe condições de vida indignas e perda de confiança nas leis e nas instituiçõ­es.

Portanto, espera-se que o STF cumpra o seu papel de defender a Constituiç­ão e confirme o seu entendimen­to de prisão após condenação em segunda instância. Trata-se de interpreta­ção imprescind­ível para a permanênci­a do nosso contrato social democrátic­o, fundado nas leis sempre voltadas para o bem comum, o que é incompatív­el com a impunidade dos criminosos.

RESPECTIVA­MENTE, ADVOGADO E ADVOGADO MESTRE EM DIREITO E DESENVOLVI­MENTO PELA FGV/SP

O Brasil jamais será um país desenvolvi­do se não reduzir os índices intoleráve­is corrupção

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