Zuck e a liberdade de expressão
Mark Zuckerberg fez, ontem, algo bem diferente. Transmitiu ao vivo, pelo Facebook, um discurso seu. Zuck não é dado a discursos, em geral é mais resguardado. Mas está sob ataque. A líder na corrida pela vaga na disputa à presidência pelo Partido Democrata, Elizabeth Warren, vem questionando a política da rede social sobre publicidade eleitoral. Ela acusa a campanha adversária, do atual presidente Donald Trump, de estar disseminando mentiras pelo sistema de publicidade. Cobra uma postura. Falando a uma plateia na Universidade de Georgetown, o presidente executivo do Facebook defendeu a liberdade de expressão, argumentando que não pode ser papel de sua empresa decidir o que é verdade, e o que não é, na fala de políticos.
Justiça seja feita: não tem nada de trivial este dilema.
Um dos argumentos de Zuck é de que, nos EUA, há regras para publicidade eleitoral veiculada por rádio e televisão. As emissoras botam no ar o que os candidatos querem, sem dar pitaco no conteúdo. Ele afirma que não deveria haver diferença.
Só que há diferença – e de uma complexidade monstro. Há no cerne da questão um problema de base filosófica, e nós não temos uma teoria ainda para lidar com ele. Sequer o compreendemos de todo. E ele começa numa distinção: aquela entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa.
Quando John Stuart Mill escreveu seu tratado sobre a liberdade, talvez o mais influente texto sobre o assunto para as democracias modernas, a diferença entre uma e outra era óbvia. Liberdade de expressão é aquela que garante, a todo mundo, o direito de poder falar o que lhe vem à cabeça. A de manifestar suas ideias. Liberdade de imprensa, por sua vez, é a liberdade de imprimir estas ideias. No século 19, não havia rádio, TV, quanto mais internet. A única forma de fazer com que um conjunto de ideias tivesse a chance de alcançar um público amplo era através da impressão. Transforma num panfleto ou livro e distribui pelo país na esperança de que muitos o leiam. Liberdade de expressão é a liberdade de fala, atinge um público pequeno. Liberdade de imprensa é a de levar o conteúdo a um público maior.
Rádio e TV não mudaram isso muito. Um discurso transmitido ao vivo é um exercício de liberdade de imprensa, mesmo que não impresso. Porque é público, não é privado. Aquilo que sai em texto, ou que é transmitido pelos meios de massa, é de fácil acesso a qualquer um.
A internet embaralha a coisa. As redes sociais, com seus algoritmos, embaralham mais ainda. Afinal, inventam a transmissão em massa que não é pública. Um número muito grande de pessoas, com determinado perfil demográfico, recebe aquela mensagem. Ninguém mais a recebe.
A diferença é importante porque o texto impresso ou programa de TV e rádio, por ser acessível a qualquer um, está na praça pública e pode ser questionado, em público, por todos. A propaganda direcionada a homens brancos com idades entre 41 e 50, com renda familiar média de menos de US$ 80 mil por ano, e que vivem em regiões industriais, atinge centenas de milhares de pessoas. Pode alterar votos. Mas está longe do escrutínio público. Não está exposta ao debate necessário numa campanha eleitoral. E, por isso mesmo, se torna uma poderosa arma de manipulação. Que é justamente o que tem acontecido.
Sim, candidatos sempre mentiram a pequenos grupos. Mas, quando falavam a grandes públicos, precisavam ter mais cuidado para evitar críticas que pudessem abalar sua credibilidade.
Ninguém quer que uma rede social decida o que um político pode ou não dizer. Nisto, Zuck está certo. É só que o problema não deixa de existir por isso, e continua muito grande. Afinal, expõe democracias à manipulação por demagogos. A gente bem sabe.
Ninguém quer que uma rede social decida o que um político pode ou não dizer