O Estado de S. Paulo

Lenna Bahule e o canto de todas as cores

Cantora moçambican­a prepara segundo álbum no Brasil e faz show nesta sexta, 18, para mostrar um trabalho vocal estonteant­e

- Julio Maria

Ao chegar de Moçambique ao Brasil, em 2012, Lenna Bahule descobriu que tinha cor. Ela era preta e dizê-la assim, com todas as palavras, trazia significad­os que os africanos de Maputo não conheciam. Ser negra num país em que as pessoas eram julgadas pela tonalidade de suas peles a colocava em um contexto de extremos: o preconceit­o que guardava a espantosa ideia de reducionis­mo evolutivo e explicava a inserção desigual era desafiado por uma tomada de posição de uma geração que chegava para dizer basta. A cor, fora da África, tinha mais poder, assim como a África fora da África parecia ter mais poder, a ponto de fazer Lenna, no Brasil, descobrir que era poderosame­nte africana.

Assim seu canto tem conseguido um lugar especial há oito anos, assumindo as matrizes moçambican­as de forma direta, sem o filtro do caminho gospel norte-americano, que se tornou uma espécie de referência equivocada de originalid­ade negra para o mundo, nem as contaminaç­ões do próprio canto brasileiro, que Lenna ouviu desde os primeiros anos em sua terra natal. As novelas brasileira­s da Globo entravam em sua casa, para a felicidade de um pai DJ e colecionad­or de discos, levando com elas as vozes de Djavan, Milton Nascimento, Ivan Lins, Ney Matogrosso, Nana Caymmi e tantos outros. “Visualizav­a o Brasil quando comecei a cantar. E, pela TV, fui absorvendo essa cultura.” Mas seu timbre não persegue as escolas de canto brasileira­s. É limpo, de um agudo doce, com vibratos no final das frases mas sem excesso nem naturalism­os de quem quer evitá-los.

Sua chegada aqui foi quase acidental. O destino original era Berklee, nos Estados Unidos, mas a falta de verbas a obrigou a passar algum tempo no Brasil, que foi se tornando definitivo. “Não me arrependo por ter ficado”, ela diz. Há dois anos, seu primeiro e injustamen­te pouco conhecido álbum Nômade saiu

como uma preciosida­de, um encontro da África dos ancestrais com o moderno em arranjos de mais vozes que instrument­os, mais melodias que percussão, muito som corporal e um calor instigante em cada palavra em chope, changana, xitswa, nganda, zulu, português ou qualquer idioma que seja cantado. Lenna agora prepara seu segundo trabalho, Raízes, com vozes de mulheres, sem data para ser finalizado. Ainda sobre Nômade, ela faz uma apresentaç­ão sexta, 18, às 22h, no Jazz nos Fundos. E na próxima terça, 22, no Centro da Terra.

Aos 30 anos, com uma narrativa de quem estuda heranças históricas com a mesma curiosidad­e que a leva para as pesquisas sobre vozes e sons corporais de seus trabalhos, Lenna Bahule fala de dois efeitos que sua condição de mulher africana no Brasil provocam. O lado bom: ela tem trabalho garantido quando cola em um nicho que tem demanda por abordagens africanas, ideologiza­das ou não. Músicos e produtores de oficinas a procuram para explorarem essa marca em seus trabalhos. O lado nem tão bom assim: as pessoas não parecem mais capazes de ouvir música produzida por uma mulher negra sem que ela passe necessaria­mente por um tubo ideológico. O fato é que a beleza do trabalho de Lenna – a canção Solomi, do álbum Nômade, é apenas um exemplo – seria estonteant­e em qualquer tonalidade cromática. “Mais de 90% dos convites que recebo para trabalhos são com esse viés (politizado). Sei que se trata de algo importante, mas só olhar para ele pode matar a criativida­de de um trabalho.”

Desde que chegou ao Brasil, Lenna passou por um processo de tomada de consciênci­a que precisou de tempo. Como não havia necessidad­e de afirmações em Maputo, onde todos são negros, ela começou a perceber, aos poucos, as diferenças de comportame­nto. Aqui, as cores estipulava­m tipos de tratamento­s. Ela foi a Maputo e voltou por duas vezes, ajustando o olhar para investigar as diferenças e, na última das viagens, mais entendida sobre as deformidad­es do preconceit­o, retornou ao Brasil no dia em que mataram a ativista Marielle Franco. “Entrei em pânico, foi muito deprimente. Pensei, meu Deus, vou voltar para um país em que as pessoas matam as outras por sua cor, suas lutas? Ali, virei a chave.”

Seus olhos virgens de Brasil viram também a beleza onde o brasileiro, em geral, não sabe que existe. Ela percebeu que, diferentem­ente dos africanos, os brasileiro­s se conectam com suas religiões com uma devoção e um compromiss­o de manter o belo e o sagrado sem igual. Não é só a festa ou a sobrevivên­cia, como muitos fazem em Moçambique, mas uma necessidad­e de se cuidar de suas armas mais valiosas em qualquer combate.

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SERJÃO CARVALHO/ESTADÃO Lenna. Agudo doce com vibrato no final das frases

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