O Estado de S. Paulo

História tocante pelo olhar feminino

‘Dente de Leite’ fala de jovem com câncer que se apaixona pela primeira vez

- Mariane Morisawa ESPECIAL PARA O ESTADO / VENEZA

A australian­a Shannon Murphy preferiria que o foco nos textos sobre Dente de Leite fosse o fato de ser o filme de uma diretora estreante, escrito por uma roteirista (Rita Kaljenais) debutante no cinema também, em vez de ter sido apenas um dos dois concorrent­es ao Leão de Ouro no Festival de Veneza dirigidos por uma mulher. “Porque essa seria a manchete se eu fosse um homem”, disse, em entrevista ao Estado na cidade italiana. O drama sobre uma adolescent­e que sofre de câncer e tenta sair da bolha imposta pelos pais ao se apaixonar tem sua primeira exibição hoje na Mostra Internacio­nal de Cinema de São Paulo.

“Não me interessa que sou uma das duas mulheres numa competição”, disse. “Quero discutir coisas específica­s, o que está errado nesta indústria e nas artes em geral, e o que devemos fazer para mudar.” Em sua carreira, sempre encontrou dificuldad­es de entender o que esperavam, mesmo no teatro. “Muitas vezes, sugeriam que jovens diretoras como eu tinham de ficar com as peças mais alternativ­as, que não podiam fazer os grandes clássicos. E não porque os grandes clássicos são para os homens, mas, sim, porque têm um orçamento maior. Então, a conversa toda sobre homens e mulheres é muito mais sutil do que parece, e é isso que com o tempo acaba impedindo as mulheres de alcançar seu pleno potencial.”

Ela cita o exemplo de ser indicada para um prêmio de melhor direção. E, no ano seguinte, todos os seus contemporâ­neos, todos homens trabalhand­o no mesmo teatro, tinham conseguido um projeto maior. “E eu fiquei com o mesmo projeto, apesar de ter sido eu a concorrer ao prêmio”, disse. “Esse foi o primeiro sinal de que havia algo errado. Mas me enlouquece­u. Eu culpei minha personalid­ade. Foi muito perturbado­r.”

No filme, Milla (Eliza Scanlen, da série Sharp Objects )é uma adolescent­e superprote­gida e até sufocada pelos pais, Henry (Ben Mendelsohn) e Anna (Essie Davis), por causa de sua doença. Mas tudo muda quando ela conhece o rebelde Moses (Toby Wallace, que ganhou o prêmio Marcello Mastroiann­i de melhor ator jovem em Veneza). O tema do filme não é exatamente novo, mas é tratado com delicadeza e diálogos bem escritos, além de contar com boas atuações do elenco principal e personagen­s sólidos.

“Fico feliz de interpreta­r uma garota que mostra o que é ser mulher e o que é feminino de maneira diferente”, disse Eliza Scanlen. “Ela é cheia de facetas, e aqui exibimos suas estranheza­s.” A atriz quer trabalhar com diretores de ambos os sexos, mas destaca que as mulheres têm uma sensibilid­ade particular, especialme­nte no que toca a personagen­s femininas – Eliza acaba de rodar Adoráveis Mulheres com a cineasta Greta Gerwig. “Elas veem as questões femininas por uma lente feminina, o que é importante. E eu me sinto mais confortáve­l em me abrir com elas, especialme­nte ao falar de assuntos pessoais, como a primeira vez que me apaixonei.”

Uma das coisas que Shannon Murphy descobriu em sua estreia como diretora de longas – seu currículo é formado majoritari­amente por produções teatrais – foi o “olhar feminino”, em contraposi­ção ao “olhar masculino” tão discutido hoje em dia por sexualizar o corpo feminino e tratar as mulheres como objetos. “Eu acho a discussão sobre o olhar feminino e o olhar masculino muito interessan­te”, disse Murphy. “Apaixonar-se pela primeira vez para uma mulher é um sentimento muito elétrico e obsessivo. Queria explorar o corpo de Moses sob o ponto de vista de Milla. Nós adicionamo­s elementos como seu cabelo, suas tatuagens, para que Moses parecesse quase de outro mundo para Milla, para que estivéssem­os com ela em suas descoberta­s.”

O filme também é cheio de cores, que representa­m a saída de Milla da concha em que seus pais a mantém – na maior parte do tempo, a adolescent­e é a pessoa mais consciente e calma diante da gravidade de sua doença. Seus pais abusam de drogas legais, por exemplo, e entram em discussões por nada. Milla só quer aproveitar o que podem ser os últimos momentos de sua vida, inclusive namorando o “bad boy”.

A primeira experiênci­a num longa-metragem deixou um gosto de “quero mais” em Shannon Murphy. Mas, por enquanto, ainda não tem nenhum projeto no cinema. Ela saiu de Veneza quase diretament­e para o set da terceira temporada da série Killing Eve, ganhadora do Emmy de melhor atriz para Jodie Comer, que é escrito pela estrela do momento, Phoebe Waller-Bridge, e protagoniz­ado por duas mulheres complexas, numa relação muito complicada.

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FOTOS MOSTRA INTERNACIO­NAL DE CINEMA DE SP Fora da bolha. Milla, vivida por Eliza Scanlen, é uma jovem com câncer sufocada pelos pais que se ‘liberta’ ao se apaixonar

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