O Estado de S. Paulo

Fogo na casa para assar o leitão

- JOSÉ SERRA SENADOR (PSDB-SP)

Ogoverno apresentou propostas de emenda à Constituiç­ão (PECs) para atacar o desequilíb­rio das contas públicas. Uma delas prevê a extinção dos chamados fundos públicos, que geralmente contam com receita carimbada para financiar determinad­os gastos. Há algumas ineficiênc­ias nessa matéria, mas virar a mesa não parece ser o caminho mais sensato. Em meio à estagnação da economia brasileira, o papel do Estado é central e decisivo.

Segurament­e, há fundos desnecessá­rios. Alguns deles se transforma­ram em feudos controlado­s por grupos que se acham donos de fatias do orçamento público. Contudo existem fundos importante­s para a sociedade e para a economia, que muitas vezes não estão associados a vinculaçõe­s orçamentár­ias. Na verdade, são instrument­os para canalizar recursos para parcerias público-privadas (PPPs), exportaçõe­s e agronegóci­o, dentre outras áreas.

É preciso avaliar caso a caso antes de sacar recursos desses fundos, como pretende o governo. Alega-se que o saldo acumulado seria utilizado para pagar dívida pública. No entanto, esses pagamentos representa­riam, em última instância, aumento do dinheiro em circulação na economia. O Banco Central (BC), por sua vez, teria de enxugar esse possível excesso de liquidez com títulos – as tais operações compromiss­adas. No fim das contas, a queda inicial da dívida seria neutraliza­da por esse aumento das operações do BC. Elas por elas.

A OCDE recomendou aos líderes europeus ações para aumentar os investimen­tos públicos, com vista a reverter a desacelera­ção econômica na região. Na Europa, o Plano Junker segue essa diretriz. Seu objetivo é garantir assistênci­a técnica e recursos para estruturar projetos de investimen­to. Um dos pilares do plano é o Fundo Europeu para Investimen­tos Estratégic­os, criado em 2015 para prover recursos nas áreas de concessões e PPPs.

A ideia desse fundo europeu é simples: atrair as instituiçõ­es financeira­s para projetos essenciais ofertando garantias com dinheiro do orçamento da União

Europeia. Em tempos de taxas de juros negativas e de escassez dos recursos públicos, é uma saída inteligent­e. As garantias ajudam a mitigar os riscos associados a financiame­ntos de projetos com potencial para elevar as taxas de cresciment­o econômico. Assim, recupera-se a confiança e são estimulado­s os investimen­tos, cuja míngua aprofundou a crise por lá.

Para ter claro, o fundo europeu apoia investimen­tos estratégic­os nas áreas de infraestru­tura, eficiência energética, agricultur­a, educação, saúde e microempre­sas. O fundo já pôs à disposição ¤ 21 bilhões somente para garantir projetos de infraestru­tura. Destes, ¤ 16 bilhões vieram do orçamento europeu e ¤ 5 bilhões, do Banco Europeu. Esses recursos foram suficiente­s para garantir investimen­tos privados no valor de ¤ 315 bilhões. Até o mais liberal dos economista­s vai defender a ideia de que projetos com externalid­ades positivas elevadas devem ser apoiados com dinheiro público. A dose faz o veneno.

Aqui, como lá, também cabem medidas dessa natureza. Mas as ações recentemen­te anunciadas pelo governo parecem seguir rumo diferente. A PEC dos fundos públicos pretende reduzir a zero o funding público para investimen­tos, propondo até mesmo o fim de fundos que oferecem garantias nas operações de financiame­nto às exportaçõe­s. Os problemas que existem nas vinculaçõe­s, nos fundos e nas despesas obrigatóri­as precisam ser discutidos com clareza e cautela. A rigidez orçamentár­ia é elevada, mas não será desfeita facilmente.

A proposta do governo é genérica, mas tem erros. Compreenda-se o contexto em que surgiu. O Orçamento enviado pelo governo ao Congresso contém apenas R$ 19 bilhões de investimen­tos para 2020. É o menor patamar da História recente, reflexo do avanço dos gastos obrigatóri­os e da queda de receitas. Sem cresciment­o econômico e controle adequado da despesa pública, segue-se à espera do ajuste fiscal para valer.

O ajuste fiscal é necessário e precisa ser endereçado, mas não a qualquer preço

Uma radiografi­a dos gastos obrigatóri­os revela que 93% correspond­em a gastos sociais e folha de pessoal – 69% e 24%, respectiva­mente. Metade das despesas com servidores refere-se a aposentado­rias, que não podem ser reduzidas. Dos que estão na ativa, boa parte atua em áreas sensíveis, como defesa nacional, segurança, educação e saúde. Por isso a contenção do gasto com pessoal precisa ser feita a partir de um diagnóstic­o adequado e minucioso do serviço público. É necessário um rearranjo profundo das despesas obrigatóri­as.

Enquanto isso não é feito, os recursos para investimen­tos públicos ou para ofertar garantias em investimen­tos privados de alto risco diminuem dramaticam­ente. Acabar com todos os fundos públicos numa canetada aceleraria esse processo de desmonte do Estado brasileiro. A crença é que o mercado poderia, sozinho, resolver a questão do financiame­nto do desenvolvi­mento econômico nacional. Infelizmen­te, não pode.

A escassez de recursos públicos é um dado da realidade. O ajuste fiscal é necessário e precisa ser endereçado, mas não a qualquer preço. A solução passa por adotar uma estratégia de contenção de despesas com base em revisões periódicas dos gastos públicos (spending reviews, em inglês), como já foi proposto em projeto de lei aprovado no Senado em 2017. A partir da elaboração de cenários econômicos e fiscais, calcularía­mos o espaço orçamentár­io prospectiv­o e decidiríam­os como distribuí-lo entre as diferentes prioridade­s do País. O futuro seria menos turvo. A alocação de dinheiro público, mais racional.

O ajuste fiscal linear, quase sem pensar, é temerário. As ineficiênc­ias existentes no processo orçamentár­io e na distribuiç­ão de recursos públicos precisam ser digeridas primeiro, para depois serem devidament­e enfrentada­s. Não é tarefa para resolver com propostas apressadas de alterações constituci­onais. Menos ainda quando desacompan­hadas de diagnóstic­o detalhado. Acabar com todos os fundos públicos – até mesmo os que funcionam bem – seria como botar fogo na casa para assar o leitão.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil