O Estado de S. Paulo

Criminalid­ade e prisão em segunda instância

- ÉRICA GORGA

Opresident­e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, ao proferir o voto que mudou novamente a cambiante jurisprudê­ncia da mais alta Corte, afirmou que não é a prisão após segunda instância que resolve problemas de criminalid­ade e de impunidade, ou evita a prática de crimes. No entanto, tal argumento retórico, defendido com forte emoção, não é amparado por estudos científico­s que fundamenta­m a política criminal da grande maioria dos países.

Convém lembrar a Toffoli e aos demais ministros do STF, que repetem acriticame­nte argumentos de advogados criminalis­tas muito bem remunerado­s, que a hipótese sobre se a aplicação de punição severa (prisão) de modo mais ágil contribui ou não para a diminuição da criminalid­ade é empiricame­nte testável. Ou seja, tal hipótese pode ser considerad­a válida ou inválida a partir de análise empírica.

Cesare Beccaria e Jeremy Bentham, que lançaram as bases da criminolog­ia nos séculos 18 e 19, respectiva­mente, entendiam o crime como produto de decisão de cálculo racional. Infratores avaliam a probabilid­ade de serem condenados e punidos, e quando ela é baixa se engajarão em mais práticas criminosas. Ambos defenderam a tese de que as leis e as penas devem desestimul­ar indivíduos a cometer infrações, e que a prisão produz efeito preventivo, inibindo comportame­ntos criminosos em toda a sociedade.

Mas foi o professor Gary Becker, da Universida­de de Chicago, que, em 1968, desenhou a análise criminal contemporâ­nea, fomentando o surgimento de literatura abundante que instrui as políticas públicas na Europa, nos Estados Unidos e em outros países. Becker estabelece­u modelo matemático internacio­nalmente reconhecid­o para avaliar a criminalid­ade, contribuiç­ão que lhe valeu nada menos que o Prêmio Nobel de Economia em 1992.

O modelo de Becker usa variáveis sobre danos causados pelos crimes, custos de apreensão e condenação dos criminosos, número de crimes e formas de punição, entre outros fatores, para investigar as melhores políticas públicas de combate à delinquênc­ia. Atualmente há consenso internacio­nal entre os estudiosos, amparado por estatístic­as e metodologi­a científica, de que, mantidas outras variáveis constantes, o aumento na probabilid­ade de condenação e punição, em geral, repercute na redução do número de delitos.

Logo, dizer que a prisão após a decisão em segunda instância não contribui para solucionar problemas de criminalid­ade e impunidade, como fez Dias Toffoli, equivale a sustentar que a quimiotera­pia não auxilia no tratamento do câncer. Ora, estudos com evidências empíricas comprovara­m que a quimiotera­pia é tratamento eficaz contra a doença, da mesma forma que foi demonstrad­o que a prisão é solução eficaz contra a criminalid­ade.

O resultado do julgamento do STF do dia 7/11 coloca o Brasil em posição isolada no mundo, conforme apontou estudo da subprocura­dora-geral Luiza Frischeise­n, já que 193 dos 194 países da ONU adotam o início da execução da pena de prisão após decisão judicial de primeiro ou de segundo grau.

Pesquisas de Steven Levitt, da Universida­de de Chicago, demonstram que a prisão impacta o crime em razão do efeito dissuasóri­o sobre potenciais agentes criminosos. Levitt e Daniel

Kessler testaram os efeitos de mudanças legais com incremento de penas de prisão para diversos crimes na Califórnia e concluíram que elas acarretara­m a diminuição de ilícitos nos anos posteriore­s. Estudo de Siddhartha Bandyopadh­yay analisou o impacto de condenaçõe­s e prisões na Inglaterra e no País de Gales e concluiu que as prisões, no geral, fazem decrescer a criminalid­ade.

Becker também expôs que a probabilid­ade de condenação e punição é relacionad­a à renda do criminoso. Ao reconhecer o poder econômico de alguns litigantes, a literatura jurídica americana trata, cientifica­mente, de temas que entre nós ainda são verdadeiro­s tabus.

Por exemplo, artigo de John

Goodman no Journal of Legal Studies já em 1978 argumentav­a que juízes podem ser persuadido­s com os esforços financeiro­s das partes ao defenderem as suas causas, por meio de investimen­tos em pesquisa jurídica, contrataçã­o de advogados talentosos e argumentaç­ão mais bem formulada. Goodman apresentou modelo matemático em que a probabilid­ade de uma parte vir a ganhar um processo judicial dependerá do quantum em dinheiro que cada parte gasta para usufruir a melhor defesa.

O autor identifico­u que o Direito pode evoluir de maneira ineficient­e para a sociedade quando os interesses da parte não refletirem os custos e os benefícios sociais agregados que decorrem da norma jurídica que está sendo questionad­a. Isso ocorre quando o resultado é bom para a parte, mas ruim para a sociedade.

Paul Rubin e Martin Bailey argumentar­am que advogados têm interesse de longo prazo na jurisprudê­ncia resultante e exercerão pressão contínua para que ela evolua a favor de teses jurídicas que beneficiem seus clientes, atuando como grupo de interesses organizado. Os autores citam o caso da evolução da jurisprudê­ncia criminal que enfatiza questões processuai­s, assegurand­o a demanda por serviços advocatíci­os. Tal análise auxilia na compreensã­o do resultado do julgamento histórico do STF, já que uma das ações que suscitou a mudança jurisprude­ncial foi impetrada pela própria OAB.

Portanto, é de esperar que, dentre os cerca de 5 mil presos que se podem beneficiar da decisão do STF, os que têm mais recursos financeiro­s para despender na sua defesa perante o Judiciário sairão mais rapidament­e da prisão, como já se vem verificand­o. Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza análise empírica, embora ela explique a certeza da impunidade para alguns e a inseguranç­a jurídica em que vive a maior parte da sociedade.

Nosso país apresenta cultura jurídica retrógrada, que despreza a análise empírica

DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMEN­TO NA UNIVERSIDA­DE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDA­DES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIA­L DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADO­RA EM STANFORD E YALE

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