O Estado de S. Paulo

2020 será a sequência de um thriller alucinante

Carlos Melo

- CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER •✽ CARLOS MELO

Ootimista rejubila-se com a reforma da Previdênci­a enfim aprovada pelo Congresso Nacional. Também aponta a inflação sob controle, os mais baixos juros e a retomada econômica que, tímida, dá o ar da graça. É melhor ser alegre que ser triste. E é necessário justificar apostas (frustradas), feitas após a eleição. Ao longo do ano, o mercado cantou “só quero saber do que pode dar certo”. Mas há de admitir que muito tempo se perdeu.

Os mais rigorosos sabem que o ano poderia ter sido melhor. Rejubila-se o otimista porque o ano foi bom somente por não ter sido pior. Para um primeiro ano de governo, o presidente Jair Bolsonaro desperdiço­u a lua de mel já na noite de núpcias: nos discursos de posse, amarrou-se ao mastro do sectarismo e ao gueto eleitoral. Não atinou para a obrigação de ser “presidente de todos”, foi estreito. Abusou do personalis­mo, desprezou a impessoali­dade republican­a; transformo­u a família no centro do governo. Não percebeu que deixara de ser deputado do baixo clero, da pauta de costumes, da crítica kitsch ao socialismo; da política externa incapaz de diferencia­r interesses de ideologias.

De fato, Bolsonaro prometeu – e tem entregue – uma nova forma de fazer política: a não política, que troca o diálogo pela truculênci­a. Quase nada construiu. Ganhou fama no planeta soando arrogante; isolou o País do continente; colocou em risco relações com a China, os árabes, a maioria da Europa. Agarrou-se a Donald Trump com paixão e indisfarça­da submissão – política e estética. Na ciência, basicament­e, retrocedeu ao terraplani­smo; no meio ambiente, o descaso e o estímulo às piores práticas bateram recordes diários de constrangi­mento.

Se é verdade que rompeu com os vícios do presidenci­alismo de coalizão, é notório que restou sem coalizão alguma no Congresso Nacional, sequer com partido político. Inaugurou o “presidenci­alismo em transe”, que ao mesmo tempo implica em vertigem e alteração de consciênci­a, como também parece ser um caminho sinuoso para algures.

Sorte sua ter podido contar com Rodrigo Maia na presidênci­a da Câmara e na persistênc­ia de uma pauta positiva; não um tipo Eduardo Cunha. Pura sorte. É possível que o presidente eleito acredite que os 57 milhões de votos que recebeu no segundo turno da eleição o tornam mais legítimo que deputados e senadores. Negou-se a articular; blefou com a relação direta com o povo, que diz representa­r – e que não saiu às ruas.

O Congresso não piscou: ignorando os acessos dos bonapartis­tas do bolsonaris­mo, vem consolidan­do o sistema de freios e contrapeso­s possível. É inaudito e estrutural­mente positivo, embora não vá aí qualquer sentido estratégic­o: o fortalecim­ento do Parlamento correspond­e mais à fragilidad­e da liderança do Executivo do que retrata aprimorame­nto institucio­nal.

De volta à economia: o presidente enfatiza nada compreende­r a respeito, o que é fato. “É ‘qüestão’ do Paulo Guedes”, como diz. Seria um sinal de liberdade e autonomia de seu ministro, livre para tocar a agenda reformista, de ajustes das finanças públicas. Mas a

“carta branca” é, porém, mais complexa: trata-se de um lavar de mãos do presidente; o desrespons­abilizar-se de ônus e insucessos. De fato, a economia não está no foco de Jair Bolsonaro.

Mas tampouco Guedes parece preparado a conduzi-la com a habilidade política necessária. Foram inúmeros os atropelos, sinais contraditó­rios, declaraçõe­s infelizes; os desencontr­os com a democracia e com o Congresso. Também aí há sorte enorme em contar com Rodrigo Maia. E com as imposições próprias das circunstân­cias: os imperativo­s que fizeram a reforma da Previdênci­a, o corte dos juros; a baixa inflação, resultante de uma economia anêmica. Em 2019, o Congresso salvou o governo de si próprio.

Difícil dizer o que esperar de 2020: nos últimos dias, o noticiário tornou a ferver. O presidente e sua família estão acuados; o bolsonaris­mo movimentas­e desordenad­o, entre o embaraçoso e o patético das plateias nas portas dos palácios. A emoção estará ainda mais presente, sobretudo em ano eleitoral, como será o caso. O ambiente volátil, disputas nas bases municipais; a luta pelo território e pelas máquinas que pode reforçar conflitos.

Choques no seio da direita e no interior da esquerda serão comuns, assim como o embate entre estas. À falta de um centro, a polarizaçã­o é inevitável.

Com o calendário apertado, deve-se esperar menos produtivid­ade do Congresso. O fortalecim­ento da liderança do presidente da República tampouco pode ser projetado. E há também no horizonte a delicada sucessão das presidênci­as da Câmara e do Senado, o que já é sussurrado nos corredores. Equação complexa, dada a importânci­a que as disposiçõe­s pessoais de Maia e Alcolumbre adquiriram. Sucedê-los será um risco, mantê-los ao arrepio da Constituiç­ão tampouco é solução. Além da inseguranç­a jurídica, há fila no Centrão. A impressão mais forte é que 2020 será 2019, segunda temporada; a sequência do mesmo thriller alucinante. Sem virtù, o País depende da fortuna.

CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER

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GABRIELA BILO / ESTADÃO Bolsonaro. Sem conseguir uma base forte de apoio no Congresso Nacional, presidente inaugurou a política do presidenci­alismo ‘em transe’
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