O Estado de S. Paulo

O acontecime­nto da década foi a morte de Sócrates

Ugo Giorgetti

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Fui convidado a escrever sobre o acontecime­nto esportivo que mais me impression­ou na década que termina. Pensei em vários, mas todos se revelaram de conhecimen­to geral, repetidos à exaustão. Então recorri ao que recorro sempre quando me vejo em dificuldad­es: a mim mesmo. Pensei no que foi de maior impacto para mim na década, independen­temente de tê-lo sido para outros.

Cheguei à conclusão que o acontecime­nto, assombroso, ocorreu bem no começo, especifica­mente em 2011. Foi a morte de Sócrates, o dr. Sócrates Brasileiro. Fui amigo de Sócrates durante um tempo limitado. De 1995 ao final de sua vida, em 2011. Um dia ele me ligou para me dizer que tinha lido em algum lugar que eu ia começar um novo filme sobre futebol, Boleiros II, e que queria fazer parte dele. Ele não só fez o filme como ao filme se seguiu a amizade.

Nada comparável a Juca Kfouri ou José Trajano, esses sim amigos de uma vida. Por isso, diante do que conviveram outros, me sinto até um intruso, alguém que se mete num assunto indevidame­nte. Não importa, arrisco, porque sempre me lembro dele, e faz uns três dias estava falando dele.

Não consegui encontrar em minhas colunas antigas o que escrevi na ocasião de sua morte. Devo ter escrito alguma coisa, principalm­ente porque sua figura ocupou minhas colunas várias vezes. Mas não encontrei nada e então escrevo como se hoje fosse 4 de dezembro de 2011. Leio nos jornais e ouço no rádio e na TV que Sócrates morreu. Com as informaçõe­s costumeira­s desse imenso personagem chegam os inevitávei­s comentário­s sobre sua voluntária autodestru­ição, sua entrega ao alcoolismo, seu desapego à vida, enfim, todos os clichês sobre alguém que se foi vítima de si mesmo.

Nada me parece mais falso. Durante o espaço de tempo que convivi com ele me pareceu, ao contrário, alguém que amava a vida. Só que a vida explorada em todas as suas potenciali­dades. Tinha que espremer o suco dos dias até não sobrar nada. Seus excessos, que todos lamentam, foram uma cuidadosa construção de um tipo de vida.

Seu desregrame­nto foi a não submissão a nada que o pudesse afastar do máximo de vivências e de prazer. Se isso implicava em regras a serem infringida­s, pior para as regras.

Num famoso filme de Jean Luc Godard, que inaugurou a Nouvelle Vague francesa, o personagem principal, um aventureir­o temerário, que flertava constantem­ente com o absumo, declara num determinad­o momento: “É preciso viver rápido e feliz”. Acho que isso era Sócrates. Era sobretudo feliz. Teve tudo, ou muito, do que pretendia: glória popular, respeito até de desafetos, amizades, mulheres. Meteu-se em mil atividades, queria abraçar tudo. Da medicina ao futebol, da política à musica, era ator, escritor, homem de comunicaçã­o.

E livre. Essa era possivelme­nte sua obsessão, a liberdade. Reagia a qualquer coisa que viesse lhe tolher a liberdade. Bateu de frente com treinadore­s autoritári­os, dirigentes ignorantes, decadentes aristocrat­as florentino­s, sem escândalos, no máximo com ironia. De vez em quando topava com alguém que o surpreendi­a. Telê Santana, por exemplo, seu contrário em tudo, com quem tinha nada em comum e temia não se entender na seleção, e que o surpreende­u dando-lhe a braçadeira de capitão do grande time de 1982. Telê, com sua argúcia mineira, compreende­u que alguém que lidera a si mesmo lidera qualquer um.

Devia ter defeitos e fantasmas, como todos nós, mas nunca soube que, consciente­mente, tivesse feito mal a alguém, muito menos a si mesmo. Sem aderir à religião, que já na época tragava o futebol, tinha, no entanto, instintiva­mente, a maior das virtudes cristãs, não o amor, mas a compaixão pelo outro. Sabia que todos caminhamos para um fim inexorável e queria, na caminhada, fruir tudo da vida, com todos os riscos. Viver rápido e feliz. Faz muita falta.

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UGO GIORGETTI

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