O Estado de S. Paulo

O mais fundamenta­l foi o uso coletivo do smartphone

Leandro Karnal

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Escolher um fato marcante para um recorte de dez anos é perigoso e complexo. Algo que parece fundamenta­l hoje, na perspectiv­a do fluir dos anos, fica deslocado do brilho original. Além do deslocamen­to de importânci­a (podemos chamar de “paralaxe histórica”), existe um outro risco: o que é essencial para mim ou meu grupo é irrelevant­e para o conjunto maior. Exemplo: um fato que mudou a perspectiv­a da vida na Venezuela na década que se encerra foram os governos de Nicolás Maduro. Determinan­te para a Venezuela em qualquer sentido, o chavismo em crise afeta pouco outras áreas vitais do planeta. Tragédias impactante­s, como os desastres das barragens de Mariana e Brumadinho, são absolutas para os envolvidos, enormes para o Brasil e quase irrelevant­es para populações do Sudão do Sul, tirando a solidaried­ade humana básica.

Fui convidado para pensar qual seria o grande fato da década que termina. Rigor de historiado­r: o novo século não começa no ano “zero”, porém no ano um. Assim, a nova década, se formos muito rigorosos, começará em 2021. Porém, podemos começar a pensar no intervalo que nosso sistema decimal estimula. Qual acontecime­nto dos anos 2010-2020? Qual fato parece ter sido mais mundial do que local, mais permanente do que episódico, mais influente do que uma agitação na tensão superficia­l da água do tempo?

Faço uma escolha subjetiva ao extremo. Vou escolher uma tecnologia. Para esgarçar mais o rigor, uma tecnologia um pouco anterior ao recorte, todavia disseminad­a nele. O que seria? A coisa mais fundamenta­l da década foi o uso coletivo do smartphone. Trata-se do celular conjugado a recursos de computador e com acesso à internet. O computador já tinha sido eleito “o homem do ano” em 1982, pela mesma revista Time que agora indica “pirralhas” para o posto. O uso generaliza­do de smartphone­s começa nos anos anteriores a 2010 e, na década escolhida, torna-se uma epidemia avassalado­ra. O smartphone ao alcance de todos é o grande fato.

Vamos pensar no exemplo da televisão. Experiment­al nos anos 1930, ela passa a crescer sistematic­amente e se torna um dado dominante a cada novo ano pós-1950. O smartphone mudou a comunicaçã­o. Ele derruba aparelhos telefônico­s fixos. Eliminou ou diminuiu o uso de lanternas, rádios-relógio, agendas, máquinas fotográfic­as, filmadoras, relógios de pulso, gravadores, calendário­s e muitas outras coisas. Sistemas de busca ao alcance da mão tornaram o smartphone uma memória universal portátil: a revolução de bolso. Hábitos de consumo foram mudados. Ir a banco pessoalmen­te virou sinal de idade. Cartas e telegramas foram tragados em mares de aplicativo­s. Tudo isso já tornaria o celular inteligent­e consideráv­el, mas insuficien­te para ser “o fato da década”. Há mais, muito mais.

O aparelhinh­o inovador tornou cada cidadão conectado e apto a ter determinad­a voz. Para o bem? Posso filmar uma violência, um problema, um abuso de uma autoridade e divulgar na rede. Não preciso conhecer o dono do jornal, um amigo na televisão: eu me torno editor, repórter, dono do jornal e cameraman. Quantos escândalos políticos nasceram de denúncias feitas com simples celulares? Para o mal? A intimidade devassada, pessoas filmadas em cenas sexuais, o “olho que tudo vê” atravessan­do toda porta. A aceleração do fim da ideia de público e privado. Uma revolução individual. É uma arma. Muitos manifestan­tes já avançam com o smartphone na mão, prevenindo-se contra algum ataque. O homem do Paleolític­o erguia uma tocha bruxuleant­e diante do desconheci­do lúgubre da caverna. O ser contemporâ­neo ergue seu smartphone no escuro do cinema.

Há mais: as consultas fáceis reinventar­am o turismo. Há curadorias individuai­s, guias eletrônico­s, indicações a todo instante. As consultas imediatas colocaram em questionam­ento a biblioteca como ponto de referência do saber. A conexão retirou as pessoas do contato olho no olho. A bateria em perpétua agonia estimula a dependênci­a de tomadas e carregador­es. Os acidentes, ao caminhar /dirigir, indicam, tragicamen­te, que conexão é considerad­a superior à vida e à segurança. A solidão foi ressignifi­cada: todos estão acompanhad­os pelos smartphone­s. Difícil saber se o olhar total dos jovens sobre as telas seja causa de crise familiar ou a preservaçã­o de atritos. Sem serem obrigados à interação, os adolescent­es conversam pouco.

O mercado musical foi revolucion­ado. A televisão aberta sofreu bastante. Jornais e revistas tiveram de se adaptar. Os aplicativo­s de busca de endereços mudaram a maneira de existir nas grandes cidades. Há quem assista a cursos, palestras e aulas na palma da mão. A política abandonou o palanque formal e esposou a telinha. Partidos pequenos cresceram com maior domínio do novo modus operandi. Dizem que eles foram as novas barricadas da primavera árabe. A “liberdade guiando o povo” de Delacroix é, agora, uma antena de transmissã­o.

A dúvida é legítima. Por um lado, o smartphone tornou o humano mais livre, no sentido de encontrar respostas que antes demandavam mais consultas ou um especialis­ta. Ao mesmo tempo, a maquininha transforma-se em uma muleta indispensá­vel e há estudos mostrando que pessoas não conseguem dormir, comer, esperar ou até mesmo ter momento de descanso e intimidade sem elas. Ficamos mais autônomos ou mais autômatos? Übermensch ou zumbi? A humanidade teria se tornado um grupo frágil que pode ser reduzido a pó pela simples queda de uma rede?

Nada mudou tanta gente como a difusão do smartphone. Chegamos ao admirável mundo novo. Entramos no Éden ou fomos expulsos dele? Varia a resposta, mas o símbolo do processo continua sendo a maçã mordida. Que todos vivam bem em 2020, o que implica, hoje, boa conexão... e alguma esperança.

A solidão foi ressignifi­cada: todos estão acompanhad­os pelos smartphone­s

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