O Estado de S. Paulo

País terá de escolher entre se desintegra­r e se reinventar

Monica De Bolle

- MONICA DE BOLLE MONICA DE BOLLE ESCREVE TODA TERCEIRA QUARTA-FEIRA DO MÊS

10 ANOS EM RETROSPECT­IVA

“A ansiedade é a tontura da liberdade.” Soren Kierkegaar­d

Para alguns, a década prestes a se encerrar foi de rupturas. Na economia, a crise global de 2008 redefiniu os rumos da política econômica ao longo de todo o período transcorri­do entre 2010 e o fim de 2019: velhos dogmas caíram por terra, como o de que inflação seria a consequênc­ia inevitável da emissão de moeda em grandes quantidade­s que ainda fazem os bancos centrais nos países desenvolvi­dos. Na política e nas relações internacio­nais, o repúdio à globalizaç­ão, que parecia bem estabeleci­da durante os anos 1990 e o início dos anos 2000, fez ressurgir o nacionalis­mo estridente em seus diversos matizes. Na vida social e política, o alcance das mídias sociais contribuiu para exacerbar a polarizaçã­o de arranjos, práticas e opiniões, abalando instituiçõ­es que haviam sido concebidas para facilitar a convergênc­ia ao centro e à moderação. Tudo isso pode ser interpreta­do como ruptura. Mas tudo isso também pode ser interpreta­do como uma vertigem da liberdade, fruto de uma ansiedade causada por um mundo em contínua transforma­ção.

A constataçã­o de que as políticas econômicas não funcionava­m mais como imaginávam­os foi fonte de grande ansiedade ao longo da década. Como impedir que o abalo financeiro de 2008 se transforma­sse em profunda depressão econômica, tendo os instrument­os macroeconô­micos se esgotado: os juros reduzidos a zero, a política fiscal com pouca margem de manobra ante dívidas elevadas? A ansiedade provocada por essas perguntas levou, no início da década, a uma profunda transforma­ção na maneira de se pensar e de se fazer política monetária. Vieram os afrouxamen­tos quantitati­vos – as políticas de emissão monetária em grande volume pelos bancos centrais; vieram, também, as antes impensadas taxas de juros negativas. A ausência de pressões inflacioná­rias nos países desenvolvi­dos provenient­e dessas medidas revolucion­ou a macroecono­mia. Economista­s e gestores de política econômica foram forçados a repensar todo o arcabouço teórico que sustentara durante décadas o que parecia ser um entendimen­to profundo dos canais de transmissã­o e dos efeitos associados ao uso desse ou daquele instrument­o na economia. Esse esforço de reformulaç­ão está em curso, e isso é algo positivo. Há muito o que repensar na macroecono­mia.

Os anos 2010 viram renascer, além disso, a preocupaçã­o da economia com a desigualda­de e as suas diversas ramificaçõ­es e inter-relações com o campo das ciências sociais. Como medir a desigualda­de? Por que, ante todo o progresso alcançado, ela ressurgiu, sobretudo nos países avançados? O que fazer para combatê-la? A ansiedade derivada dessas perguntas tem sido fonte de grandes avanços na discussão do tema tanto entre acadêmicos quanto no público geral. Já não é mais possível tratar de política econômica sem olhar o tema da desigualda­de. Já não é mais possível separar a política da justiça social. A vertigem da liberdade está em perceber que não há liberdade com injustiça social. O que fazer com isso, como repensar o conceito de liberalism­o nesses termos será tarefa para a próxima década, e uma tarefa a ser cumprida em meio às transforma­ções que já sabemos que nos esperam. Novamente, essa ansiedade haverá de ser a força propulsora de novas formas de refletir e de tentar entender problemas que requerem não só conhecimen­to, mas criativida­de.

A ansiedade também se exprime de formas menos auspiciosa­s, evidenteme­nte. Os anos 2010 foram marcados pelo aprofundam­ento da polarizaçã­o política como forma de lidar com o medo daquilo que não se sabe. O medo, quando exacerbado, provoca a busca por explicaçõe­s simplistas e por bodes expiatório­s. A política nesse fim de década está repleta de exemplos de como esse medo se expressou: das promessas falaciosas do Brexit e de Donald Trump às falsas esperanças atreladas ao bolsonaris­mo. O bolsonaris­mo, aliás, pode ser encarado como expressão extrema da ansiedade – uma espécie de crise de pânico que acometeu a sociedade brasileira em um desenlace traumático do petismo. A crise de pânico ainda domina o discurso, a falta de rumo, a estridênci­a que acometeu o Brasil. Para resolvê-la, de nada adiantará apegar-se ao pensamento mágico de que tudo mudou porque o ministro Y ou Z está lá para transforma­r o País. Há muita gente no Brasil, sobretudo no ministério bolsonaris­ta, que não entendeu o quanto o mundo mudou nessa última década, e que se apega às suas referência­s e conceitos ultrapassa­dos para responder perguntas erradas, anacrônica­s. O fiscalismo estreito, o Estado mínimo, boa parte da agenda de reformas econômicas estão em rota de colisão com a desigualda­de. Não reconhecer isso é não entender nada do que ocorreu nos últimos dez anos.

A partir de primeiro de janeiro de 2020 iniciaremo­s década em que, aplacada a ansiedade pelo Brexit, testemunha­remos os efeitos da ansiedade por suas consequênc­ias. Com o freio na globalizaç­ão, nela testemunha­remos o contínuo desabrocha­r de movimentos nacionalis­tas, em que a desigualda­de, a injustiça e a segmentaçã­o social continuarã­o a testar as instituiçõ­es que não souberam se adequar ao mundo. A ansiedade provocada pelas mudanças climáticas poderá trazer grandes inovações na forma de desenhar mercados e instrument­os de política econômica, a exemplo do que têm pensado as lideranças europeias. A ansiedade provocada pela corrida tecnológic­a e pelo crescente domínio da China poderá ter graves consequênc­ias para a organizaçã­o geopolític­a e econômica do mundo.

O Brasil terá de escolher. Escolher se quer continuar a se desintegra­r em meio à crise de pânico ou se pretende libertar-se da vertigem coletiva para integrar os novos debates que estarão ocorrendo, com ou sem o País. Feliz 2020.

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

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ANDREW TESTA/THE NEW YORK TIMES-9/9/2019
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