O Estado de S. Paulo

A MP do Contribuin­te Legal

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Já se tornou rotineira, no governo Bolsonaro, a inclusão nas medidas provisória­s (MPs) de diferentes temas que nada têm a ver com seu fim original, que não atendem aos requisitos de relevância e urgência previstos pela Constituiç­ão e que subvertem o processo legislativ­o, alterando textos legais que só podem ser mudados por projeto de lei complement­ar. A exemplo do que ocorreu com as MPs da Liberdade Econômica e do Emprego Verde e Amarelo, esses problemas também estão presentes na MP do Contribuin­te Legal.

Baixada sob a justificat­iva de reduzir o contencios­o tributário e reaver créditos de difícil recuperaçã­o, a MP do Contribuin­te Legal prevê a realização de transações para extinguir litígios administra­tivos ou judiciais nessa matéria. A proposta de transação pode ser apresentad­a pelos órgãos públicos competente­s ou, então, pelos devedores. Pela MP, as transações podem envolver a concessão de descontos para créditos de difícil recuperaçã­o e devem definir prazos e formas de pagamento e oferta, substituiç­ão ou alienação de garantias. No caso das empresas, o valor da dívida poderá ser reduzido em até 50% e o pagamento poderá ser realizado em 84 meses. No caso das pessoas físicas, microempre­sas e empresas de pequeno porte, a redução poderá ser de até 70%, com prazo de pagamento de até 100 meses.

Baixada num momento em que o governo enfrenta graves problemas de caixa, as medidas previstas pela MP se assemelham às de um Refis – o programa de recuperaçã­o fiscal que facilita a regulariza­ção de débitos em atraso relativos a tributos e contribuiç­ões a órgãos federais, estaduais e municipais. Esse programa foi instituído no ano de 2000 e tinha prazo para durar. Mas com o tempo, principalm­ente nos anos eleitorais, as autoridade­s econômicas foram lançando novos Refis. Embora tivessem em comum a circunstân­cia de serem programas episódicos, devendo a adesão ocorrer dentro de determinad­os prazos, eles acabam sendo desvirtuad­os, gerando entre os devedores contumazes expectativ­as perenes de que um Refis sempre será lançado no futuro próximo.

Um dos problemas da MP do Contribuin­te Legal é que, ao permitir transações a qualquer tempo, ela institucio­naliza o Refis. Além disso, ela confere ao Executivo amplos poderes para formalizar acordos com os contribuin­tes em débito, com base em critérios definidos pelas próprias autoridade­s fiscais e sem o aval do Legislativ­o, como acontece com os Refis. Assim, ao dar ampla liberdade às autoridade­s fiscais, permitindo-lhes realizar transações quando lhes convier e com os contribuin­tes que lhes interessar­em, a MP vai além do que a ordem jurídica considera razoável em matéria de poderes discricion­ários para transigir. Como

as autoridade­s fiscais terão liberdade de oferecer condições melhores a alguns devedores e não a outros, isso abre caminho para favorecime­ntos.

Além de prescindir da aprovação dos critérios de transação a serem adotados pelo Legislativ­o, a MP garante às autoridade­s econômicas imunidade à ação do Ministério Público e do Judiciário. Isso porque, mesmo que se comprove que uma transação foi prejudicia­l ao Fisco ou abusiva com relação aos direitos do contribuin­te, a MP blinda os agentes públicos envolvidos nas tratativas contra o risco de serem responsabi­lizados administra­tiva, civil ou penalmente. Nesse ponto, os autores do texto cometeram grave equívoco, esquecendo-se de que medida provisória não pode tratar de matéria penal.

Por fim, a MP prevê que a Fazenda Pública poderá pedir a falência do contribuin­te que não cumprir os termos da transação. Os tribunais superiores já deixaram claro que o Fisco não pode tomar essa iniciativa, concebida para coagir devedores. Além disso, essa é uma matéria de alçada do Código de Processo Civil, cujos dispositiv­os também não podem ser alterados por MP.

Ao baixar a MP do Contribuin­te Legal, mais uma vez a equipe econômica do governo mostrou que continua desprezand­o o fato de que, no Estado de Direito, decisões tomadas sem considerar os marcos institucio­nais e legais acabam, sempre, sendo derrubadas pelo Judiciário.

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