O Estado de S. Paulo

Sob Ortega, não se pode protestar

Quase dois anos após início das manifestaç­ões contra o governo, movimento apenas levou a mais prisões e violentas repressões

- /NYT, TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU MASAYA, NICARÁGUA

“Pensando que este era um país civilizado, eu disse que sim” Edwing Román

PADRE QUE CONCORDOU COM GREVE DE FOME DENTRO DE SUA IGREJA

“Eles dizem que temos mísseis e isso e aquilo, mas a única arma que temos é a bandeira e a nossa voz”

“Queremos uma Nicarágua livre” Karen Lacayo Rodríguez

MANIFESTAN­TE QUE SE OPÕE AO GOVERNO

Diana Lacayo nunca imaginou que uma greve de fome em uma igreja pudesse se transforma­r em um cerco de nove dias, com a polícia do lado de fora e a eletricida­de e a água cortadas do lado de dentro. Mas, para as autoridade­s nicaraguen­ses, mesmo esse modesto protesto era uma provocação que precisava ser esmagada.

Por quase dois anos, os nicaraguen­ses se levantam contra o jugo da família Ortega, acusada de transforma­r a Nicarágua em um feudo pessoal: o presidente não tem limites ao mandato, a primeira-dama é vice-presidente e seus filhos ocupam cargos importante­s em setores como gás e televisão. Diante da agitação, o governo adotou medidas inflexívei­s para silenciar a dissidênci­a pública. Apesar da economia em colapso, das sanções dos EUA e da migração em massa, o presidente Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, se mantêm firmes no poder.

Antes visto como herói nacional, por sua liderança da Frente Sandinista que derrubou a ditadura de Anastasio Somoza na década de 70, Ortega agora é visto por muitos dessa geração de nicaraguen­ses como um governante autocrátic­o.

Enquanto ativistas pró-governo semeiam violência nas ruas, as vozes da dissidênci­a são silenciada­s com prisão e agressão. Cansados e atacados por apoiadores do governo, os manifestan­tes às vezes voltam para casa sem telefones nem sapatos.

Desesperad­as para serem ouvidas, Lacayo e outras oito mulheres se reuniram para ver se uma greve de fome poderia resultar na liberdade de seus maridos, irmãos e filhos, ativistas políticos

que estão definhando nas prisões do governo. Quando a greve acabou, 14 pessoas ao todo, entre elas um padre católico, haviam passado mais de uma semana trancadas dentro da igreja, cercadas pela polícia, quase sem suprimento­s básicos.

“Eles nos deixaram como ratos no buraco”, disse o reverendo Edwing Román, o padre que ficou preso na igreja com as manifestan­tes.

Para os nicaraguen­ses, foi mais um lembrete de que uma simples manifestaç­ão pode ter consequênc­ias graves.

No ano passado, o presidente parecia estar ameaçado, enquanto os nicaraguen­ses realizavam

seus maiores protestos em décadas. Embora o governo tenha se recuperado, as grevistas em San Miguel Arcángel e outros manifestan­tes foram motivados pela queda do aliado boliviano de Ortega, Evo Morales.

Mas, apesar de toda a ideologia e das inclinaçõe­s autoritári­as que compartilh­am, Ortega gosta de uma coisa de que Evo não gosta: os militares e a polícia nacional ficaram ao seu lado, protegendo-o, assim como as forças de segurança protegem Nicolás Maduro na Venezuela e outros líderes autoritári­os ao redor do mundo.

Eassim,naNicarágu­a,osprotesto­s levaram apenas a mais prisões,

mesmo neste momento em que a crise assola o país. A economia está patinando e quase 100 mil pessoas fugiram da Nicarágua.

Diante de tudo isso, Ortega e sua mulher pintam um retrato da Nicarágua como um país muito mais seguro que seus vizinhos, e um novo slogan alerta para os perigos da perturbaçã­o social: “Não se brinca com a paz”. Mas a Nicarágua não está nem um pouco segura.

Os protestos começaram em abril de 2018, quando cidades inteiras se levantaram contra os Ortegas. Começaram por causa de cortes na previdênci­a social, mas logo se transforma­ram em uma crítica generaliza­da contra o governo cada vez mais antidemocr­ático. A Suprema Corte havia sido acossada, os parlamenta­res, expulsos, as eleições municipais, fraudadas, e os limites de mandato, ignorados.

Três meses depois, o governo tomou as ruas de volta. Em uma repressão esmagadora, a polícia disparou contra manifestan­tes que haviam erguido barricadas em todo o país. Mais de 300 pessoas morreram, entre elas 22 policiais.

Dezenas de manifestan­tes, que queimaram prédios, tomaram universida­des por meses e bloquearam estradas por semanas, ainda estão detidos, entre eles o filho de Lacayo, Scannierth Merlo Lacayo, de 22 anos, que foi condenado a 5 anos de prisão.

Em novembro, Diana Lacayo e outras mulheres com parentes presos se aproximara­m de Román e perguntara­m se poderiam usar sua igreja para uma greve de fome. O padre concordou: “Pensando que este era um país civilizado, eu disse que sim”.

Román, de 59 anos, é um dos vários padres da Nicarágua que assumiram papéis de liderança na insurreiçã­o – um grupo de clérigos que não mediu palavras e empregou termos como “ditadura” para descrever o governo.

O governo afirma que muitos manifestan­tes estão armados e a mídia ignorou as atrocidade­s que cometeram, incluindo assassinat­os e queima de prédios do governo. Manifestan­tes como Karen Lacayo Rodríguez, de 42 anos, rejeitam as alegações. “Eles dizem que temos mísseis e isso e aquilo, mas a única arma que temos é a bandeira e a nossa voz”, disse. “Queremos uma Nicarágua livre.”

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OSWALDO RIVAS/REUTERS–23/9/2018 Dura repressão. Manifestan­tes enfrentam polícia em Manágua; mais de 300 pessoas já morreram nos protestos

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