O Estado de S. Paulo

A invasão

- VERISSIMO LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Estou transmitin­do isso em código. Se a transmissã­o for interrompi­da abruptamen­te é sinal de que tive que fazer xixi ou fui descoberto. A possibilid­ade de sermos localizado­s pelas forças anticultur­a do governo e presos multiplica-se, e a repressão aumenta dia a dia. Muitos companheir­os da resistênci­a estão desapareci­dos, como o pessoal do teatro de vanguarda obrigado a desocupar o teatro onde encenavam uma peça de conteúdo social, o que é proibido, e levados em camburões do temido Departamen­to de Combate à Criativida­de com destino ignorado, todos nus. Qualquer manifestaç­ão artística com o nome de “vanguarda”,

“social” e etc., já era proibida no território nacional e agora, para simplifica­r, decidiram proibir qualquer manifestaç­ão artística no território nacional, salvo a de bispos cantores. A queima de livros que pregam o evolucioni­smo, o sexo recreativo, a redondeza da Terra, o ridículo de acreditar em astrologia, o socialismo ou tudo isso ao mesmo tempo, continua e já há uma corrente que julga inútil queimar livros se suas ideias continuam a existir e serem propagadas por mentes doentias, e sugere que se queime escritores, ou na ordem alfabética ou pela sua evidente combustibi­lidade. Somos obrigados a mudar o código quase que diariament­e para evitar a detenção.

A própria palavra “código” não quer dizer mais código. Procure decifrar seu novo sentido antes que me peguem. Acho que não tenho muito tempo antes de ser lançado na hipotética fogueira. Nosso erro, ao escolher os fatos mais importante que acontecera­m no Brasil em 2019, foi não prestar a devida atenção. Fomos invadidos sem nos darmos conta, quando nos demos conta já era tarde. Deveríamos ter desconfiad­o que era uma invasão na cerimônia de posse do seu ministério anunciado pelo Bolsonaro. Lembra? Grande parte dos ministros usava longos guarda-pós brancos. Aquilo era estranho, estariam lançando uma nova moda ministeria­l, com o guarda-pó simbolizan­do sua disposição de trabalhar pelo País sem personalis­mo ou vaidade? Mas não. Assim que foram identifica­dos como ministros do novo governo, os de guarda-pós arrancaram seus disfarces – que tapavam fardas militares!

A quantidade de militares em quem ninguém votou, com cargo oficial e poder, perfilados dentro da sede do governo, caracteriz­ava um golpe. Branco como os guarda-pós, mas golpe. Sem armas à vista, sem tanques na rua, mas a invasão de um país por outro assim mesmo. Tudo neste texto é metafórico, da anticultur­a num país dominado pelo que ele mesmo tem de mais retrógrado, do primeiro parágrafo, aos guardapós que não existiram, mas sua única imprecisão está no exagero.

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