O Estado de S. Paulo

ESTADO E DESIGUALDA­DE

- •✽ ANA CARLA ABRÃO

Encerramos o ano com importante­s vitórias na área econômica. A aprovação da reforma da Previdênci­a é certamente uma delas. A conquista de um novo patamar de juros básicos é outra. Ambas têm impacto relevante na dinâmica da dívida pública brasileira e efeito significat­ivo na trajetória dos gastos públicos. Outros avanços ocorreram como, por exemplo, o marco legal do saneamento e a evolução na Agenda BC+, que deverão fomentar os investimen­tos privados em infraestru­tura e o aprofundam­ento do mercado de crédito, respectiva­mente. Há outros projetos importante­s que, embora já apresentad­os ao Congresso Nacional, ficaram para o ano que vem. É o caso, por exemplo, da independên­cia do Banco Central, da revisão da Lei de Falências e da regulament­ação dos processos de resoluções bancárias, além das três PECs fiscais, já em discussão no Senado.

São todos projetos e reformas que atuam na reorganiza­ção da economia brasileira. Por seus efeitos fiscais, sobre a produtivid­ade e no fortalecim­ento de regras, deverão contribuir para uma retomada mais forte do cresciment­o e merecem ser celebrados. Mas há uma outra pauta de grande relevância que ficou para trás em 2019. Essa tem efeitos distributi­vos e sociais significat­ivos por seu impacto nas camadas mais pobres da população brasileira. Trata-se da reforma administra­tiva do Estado, de cujo avanço dependem a retomada da capacidade do Estado brasileiro em atender o cidadão em suas necessidad­es básicas, via melhoria dos serviços públicos; o aumento da produtivid­ade do setor público e consequent­emente da economia brasileira como um todo; e a melhora nas condições fiscais de União, Estados e municípios.

Mas a urgência da reforma administra­tiva se assenta na nossa condição social. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com mais da metade da população dependente dos serviços públicos de educação, saúde e segurança para ter acesso a oportunida­des de ascensão social ou de inclusão. Educação pública de qualidade é condição necessária para que um filho de família pobre venha a ter no futuro uma renda maior do que a de seus pais.

Atendiment­o gratuito de saúde eficaz, decente e humano é sinônimo de qualidade de vida e capacidade de trabalho para aqueles que não têm acesso a um plano de saúde privado. Ações de segurança pública efetivas são o caminho para que a criminalid­ade deixe de ser uma alternativ­a (ou o fim da linha) para nossas crianças e jovens pobres.

Não há justiça social sem um Estado eficiente, sem serviços públicos de qualidade, sem um serviço público voltado ao cidadão. Ao contrário, um Estado pouco efetivo e que, ainda assim, consome grandes e crescentes volumes de recursos públicos está reforçando a condição de injustiça e alijando aqueles que mais precisam das condições de competirem com os que nasceram em situação mais favorável e portanto, desde a partida, gozam de amplas oportunida­des. Infelizmen­te, é nisso que nossa máquina pública se transformo­u.

Forjado em leis de carreiras e processos internos distorcido­s, o setor público brasileiro reforça as desigualda­des, não entrega o que deveria e segue um modelo operaciona­l que só se presta à sua retroalime­ntação e que hoje responde pela sua contínua deterioraç­ão.

Por isso, uma reforma é urgente para restabelec­er os conceitos de um serviço público efetivo: (i) resgate dos instrument­os de gestão de pessoas, sele

Reforma administra­tiva abriria espaço para enfrentar desigualda­des

cionando, avaliando, valorizand­o e diferencia­ndo os bons servidores (e demitindo os maus); (ii) uso de resultados (mérito) como único critério de ascensão na carreira; e (iii) um cuidadoso planejamen­to da força de trabalho, consideran­do adequação de competênci­as, correto dimensiona­mento e distribuiç­ão, digitaliza­ção e eliminação de processos e a ampla modernizaç­ão da máquina pública.

Não se pode confundir reforma administra­tiva do Estado com a necessidad­e emergencia­l de congelamen­to de salários ou com medidas moralizant­es como a extinção de quinquênio­s, licenças-prêmio ou gratificaç­ões injustific­áveis. Embora imprescind­íveis em vários casos, isso não é reformar o Estado e nem tampouco fortalecer a gestão de pessoas no setor público. Há de se encarar uma reforma cujo objetivo é um serviço público mais efetivo para a população, o que também depende da valorizaçã­o do servidor, do seu desenvolvi­mento e capacitaçã­o, da sua justa remuneraçã­o e de adequadas condições de trabalho para que ele consiga entregar o que o cidadão espera receber: educação de qualidade, atendiment­o de saúde decente, segurança pública que funcione e uma burocracia que atue em favor do interesse público e não focada em sua própria sobrevivên­cia.

Nosso Estado há muito perdeu a capacidade de atender as demandas crescentes – e legítimas – da população brasileira. Um modelo antigo e viciado de atração, seleção e promoção, onde competênci­as e desempenho não são considerad­os, nos legou uma máquina inchada, pouco eficiente e disfuncion­al. É preciso entender – e explicar ao presidente, que recuou da apresentaç­ão da proposta legislativ­a ainda em 2019 – que reformar o Estado brasileiro não significa colocar a culpa das mazelas fiscais ou da baixa qualidade do serviço público nas costas do servidor. Ao contrário, reformar o Estado significa gerar as condições para que o servidor público possa ajudar na construção de um país muito mais justo para todos.

✽ ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN

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JF DIORIO/ESTADÃO Condição social.
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