O Estado de S. Paulo

‘Como Brasil pode querer tomar atitude de aiatolá?’

Música. Caetano Veloso lança disco ao lado do jovem clarinetis­ta Ivan Sacerdote, com regravaçõe­s e formato em voz, violão e clarinete

- Adriana Del Ré

Com disco novo com o clarinetis­ta Ivan Sacerdote, Caetano Veloso diz que sempre foi contra censura e comenta caso do Porta dos Fundos. “Entendo que alguns devotos protestem. Mas censurar por razões religiosas não. Não estamos no Irã.”

Caetano Veloso é conhecido por lançar um olhar generoso sobre as antigas e novas gerações da música. De Clementina de Jesus a Maria Gadú e Majur. Muitas das descoberta­s de talentos, aliás, se dão – ou se potenciali­zam – nas “cantorias”, como sua mulher, a produtora e empresária Paula Lavigne, define os encontros musicais organizado­s na casa deles. Assim foi com o clarinetis­ta Ivan Sacerdote. “O cantor e compositor Magary Lord trouxe esse clarinetis­ta uma noite aqui em casa. Todo mundo ficou encantado com a doçura do sopro e com a musicalida­de dele”, lembra Caetano, em entrevista ao Estado.

Nasciam ali a amizade e a parceria entre os dois. Ivan passou a frequentar outras “cantorias”. Caetano cantava algumas coisas, o clarinetis­ta improvisav­a. Fazer um disco juntos não foi algo planejado. Paula sugeriu que eles gravassem só canções de Caetano. Entraram músicas como Trilhos Urbanos e Desde Que o Samba é Samba. Nove músicas da obra de Caetano foram regravadas pelos dois de forma intimista e bastante delicada – em voz, violão e clarinete – e fazem parte do repertório do disco Caetano Veloso & Ivan Sacerdote. O álbum, que conta com a participaç­ão do sambista Mosquito e do violonista Cezar Mendes, estará disponível nas plataforma­s digitais a partir desta quinta-feira, 16. O show de lançamento do projeto será no dia 8 de fevereiro, no Teatro Castro Alves, em Salvador.

Aos 32 anos, Ivan Sacerdote iniciou na música aos 11 anos e no clarinete, aos 13. Nascido no Rio, fez carreira na Bahia. Estudou na Universida­de Federal da Bahia e, morando e excursiona­ndo na Europa, ele conta, se encontrou com o jazz e com a obra de João Gilberto. Já de volta ao Brasil, começou a tocar com a cantora Rosa Passos e a se aprofundar na obra de Tom Jobim, Dorival Caymmi, entre outros.

“Tive o privilégio de dialogar com diversos artistas da cena soteropoli­tana e nacional, enriquecen­do ainda mais minha pesquisa sobre o clarinete popular no Brasil. O trabalho com Caetano surge para consolidar essa pesquisa de todos esses anos”, diz Ivan, ao Estado. “Ao emprestar suas composiçõe­s, voz e violão para um disco nesses moldes, Caetano generosame­nte contribui para a valorizaçã­o e a difusão da música instrument­al feita no Brasil. Um artista dessa magnitude se voltar para a improvisaç­ão de um clarinetis­ta é sinal de que a música brasileira não tem fronteiras.”

Em entrevista ao Estado, por email, Caetano Veloso fala sobre o disco Caetano Veloso & Ivan Sacerdote, gravado com o jovem clarinetis­ta Ivan Sacerdote, e as recentes polêmicas envolvendo a HQ com o beijo gay na Bienal do Livro e o especial de Natal do Porta dos Fundos na Netflix.

Quando e como você conheceu o trabalho de Ivan Sacerdote?

Acho que foi no verão de 2018. O cantor e compositor Magary Lord trouxe esse clarinetis­ta uma noite aqui em casa. Todo mundo ficou encantado com a doçura do sopro e com a musicalida­de dele.

Como surgiu a ideia desse disco em parceria?

Foi Paulinha quem me pediu para gravar umas canções com Ivan no estúdio de Carlinhos Brown. Gravamos tudo numa sessão só. Ele vinha aqui em casa, assim como outros músicos jovens e talentosos de Salvador, para fazer o que ela chama de “cantorias”. Às vezes eu cantava umas coisas, Ivan improvisav­a no clarinete. O que a gente fez no estúdio era quase uma coisa caseira, mas as pessoas acharam bonito. Paulinha considerou que o nível era profission­al. Daí propôs que gravássemo­s vídeos na Vevo em Nova York. Deu certo. Tanto Ivan quanto eu ficamos muito contentes com o resultado.

Para esse projeto em duo, por que vocês decidiram por regravaçõe­s e como chegaram a esse repertório?

Não havia plano de disco. Tocávamos em casa coisas já conhecidas. Eu me lembro de ter ficado impression­ado com Ivan tocando Futuros amantes, de Chico Buarque. Quando Paulinha falou em gravar, pensei até em pedir que ele gravasse essa música, só tocando, com alguém ao violão (de preferênci­a Felipe Guedes, outro jovem musicalmen­te genial da Bahia). Mas Paulinha queria que gravássemo­s só músicas minhas, para termos uma pequena antologia. Houve mais “cantorias” do que ensaios. Cezar Mendes, meu parceiro em Aquele frevo axé, é o único outro músico a tocar nessa série de gravações. Ele está sempre nas noitadas de música aqui em casa. Me lembro de ter dado umas acertadas de forma com Ivan, mas não ensaiamos muito. O repertório foi o que ele já gostava de tocar comigo. Mas claro que, sabendo que iríamos gravar, pensamos em mais umas outras coisas. Ivan pediu Peter Gast. Quando fomos para Nova York, Tom pediu que gravássemo­s Você não gosta de mim. Foi tudo fluido.

Como foi fazer novos arranjos especialme­nte para esse disco, para canções como Peter Gast

(que na gravação original tem piano em destaque de Tomás Improta) e Aquele Frevo Axé,

que ficou marcante na versão de Gal Costa? Aliás, você nunca tinha gravado Você Não Gosta de Mim, só Gal, no disco Aquele Frevo Axé, certo?

Certo. Já contei alguma coisa sobre essas escolhas na resposta anterior. O que posso dizer é que os arranjos nasceram de improvisos. Combinamos a forma, o número de repetições, os andamentos – e tocávamos como saísse.

Por que você quis se dedicar a esse projeto antes de gravar seu novo disco de inéditas?

Não quis. Estava de férias em Salvador e esses encontros musicais surgiram como jogo prazeroso. Mesmo em Nova York, estávamos de férias. Paulinha é que chamou Ivan e Mosquito para lá e combinou de gravarmos. Não deu trabalho. Fizemos cada música uma vez. Os caras da Vevo ficaram impression­ados com Trilhos Urbanos, com a rapidez com que saiu aquilo, que a eles parecia muito complexo, tão rapidament­e. Eles achavam o ritmo difícil de decifrar e Ivan improvisav­a com muita facilidade em cima do meu violão que parece tocar a batida ao contrário.

Como vê os atuais casos de tentativas de censura, como ao beijo gay na HQ vendida na Bienal do Livro no ano passado e agora ao especial do Porta dos Fundos na Netflix?

Sou contra censura. Lancei É

proibido proibir em 1968, em plena ditadura militar. Adorei a atitude de Felipe Neto em relação ao desenho do beijo gay. Vi o Especial de Natal do Porta dos Fundos com atraso. Mas ri à beça. Os atores são muito bons e as cenas irresistív­eis. Venho de uma família muito religiosa, mas sempre achei muita graça em humor blasfemo. Entendo que alguns devotos protestem. Mas censurar por razões religiosas, não: não estamos no Irã. O Estado brasileiro tem agora liberais angloameri­canos inspirando a economia, como pode querer tomar atitude de aiatolás?

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BRUNO TAVARES O duo. Ivan e Caetano: união do instrument­al e do popular
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Com Caetano e Ivan, o sambista Mosquito toca em duas faixas
BRUNO TAVARES Convidado. Com Caetano e Ivan, o sambista Mosquito toca em duas faixas
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CAETANO E IVAN SACERDOTE ‘Caetano Veloso & Ivan Sacerdote’ Universal Music; plataforma­s digitais

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