Caneladas e barbeiragens
“Barbeiragens” cometidas pela Subchefia de Assuntos Jurídicos são inadmissíveis num país que se pretende sério.
Atumultuada relação do presidente Jair Bolsonaro com o Congresso, uma das marcas de seu primeiro ano de mandato, é fruto tanto da má concepção que o chefe do Poder Executivo tem do papel do Poder Legislativo e da democracia representativa como das “barbeiragens” que foram cometidas no período por um dos órgãos mais estratégicos do governo, a Subchefia para Assuntos Jurídicos (SAJ), ligada à Secretaria-Geral da Presidência. À frente dos dois órgãos está o ministro Jorge Oliveira, um dos mais próximos auxiliares do presidente.
O alto número de rejeição aos projetos do Poder Executivo enviados ao Congresso em 2019 – Jair Bolsonaro é o presidente com a pior taxa de conversão de projetos em lei desde a redemocratização do País, em 1985 – deve-se, em grande medida, ao bem conhecido desprezo do presidente pela construção de uma base de apoio parlamentar pautada por valores republicanos e a uma visão turvada que tem do Poder Legislativo, entendido como mero carimbador das propostas oriundas do Palácio do Planalto.
Muitos decretos, medidas provisórias e projetos de lei caíram sob o crivo do Poder Legislativo porque foram pessimamente concebidos no conteúdo e, sobretudo, na forma.
Talvez inspirado pela expressiva votação que recebeu, o presidente Jair Bolsonaro arvorou para si o papel de intérprete fidedigno das vontades do “povo”, ignorando o fato de que 513 deputados federais e 81 senadores, a rigor, têm tanta representatividade quanto a Presidência da República, ou mesmo mais. Essa confusão, ora acidental, ora deliberada, fez com que alguns temas caros ao presidente Bolsonaro e a seus apoiadores mais aguerridos perdessem força no Congresso, onde outros atores sociais e interesses, não necessariamente afinados com a agenda presidencial, também estão representados.
Ajudou a baixa conversão legislativa do Poder Executivo no ano passado a péssima qualidade técnica das propostas enviadas ao Congresso. A responsabilidade por garantir o apuro jurídico dos projetos que saem do Palácio do Planalto é da SAJ, órgão que historicamente sempre foi vinculado à Casa Civil, mas que em junho de 2019 passou à alçada da SecretariaGeral da Presidência. A quem a SAJ está subordinada é a questão menos importante, mero arranjo administrativo que o presidente decida dar a seu governo. O que causa espanto é o número das chamadas “barbeiragens” cometidas pela Subchefia que tem por missão justamente servir como o último filtro do rigor jurídico das propostas do Poder Executivo antes que elas atravessem a Praça dos Três Poderes.
O ministro Jorge Oliveira, advogado e policial militar da reserva da Polícia Militar do Distrito Federal, assumiu a SAJ no início do ano passado. Desde então, já deu aval para aumento de gastos sem dotação orçamentária, para reedição de medidas provisórias de igual teor no mesmo ano, o que é proibido pela Constituição, e chancelou a edição de decretos que continham dispositivos claramente inconstitucionais. Alguns dos erros são tão primários que comprometem bem mais do que apenas a qualidade técnica dos projetos do Executivo: depõem contra a própria Presidência da República, que parece não ter feito nada para evitar o constrangimento dos “pitos” que recebeu de ministros do Supremo Tribunal Federal, de parlamentares e de membros de outros órgãos do governo.
Por trás desses erros pode haver método. O presidente Jair Bolsonaro estimulou em um sem-número de ocasiões o embate entre os seus apoiadores e o Congresso, como se este fosse um anteparo aos bons desígnios do presidente, que envia os projetos pedidos pelo “povo”, mas os parlamentares não fazem a sua parte. Um de seus filhos, o vereador Carlos Bolsonaro, chegou a dizer que “por vias democráticas” seria muito difícil “transformar o País”.
Seja por incompetência, seja por método, as “barbeiragens” cometidas pela SAJ em 2019 são inadmissíveis em um país que se pretende sério. Oxalá a má experiência suscite mais humildade e estudos neste ano.