O Estado de S. Paulo

Um véu de religiosid­ade para o fascismo

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Agora o pretexto foi o especial do Porta dos Fundos, a produção humorístic­a chamada A Primeira Tentação de Cristo (em cartaz no Netflix). De pronto as falanges do moralismo rabugento alegaram que o filme afronta as tradições cristãs e ato contínuo desferiram seus ataques. Uma vez mais a intolerânc­ia que vem sufocando a vida cultural brasileira mostrou sua face medonha. Sombras cobriram as festas de fim de ano.

O pesadelo começou na véspera de Natal, quando um grupo de vândalos jogou coquetéis Molotov na sede do Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, espalhando labaredas pelo estabeleci­mento. Em seguida, num vídeo sinistro que circulou nas redes sociais, uns tipos mascarados, falando em nome de um integralis­mo funesto, assumiram a autoria do atentado. Contra a comédia de ficção, o terrorismo real se impôs.

A polícia rapidament­e passou a investigar o crime, mas não conteve a tensão. Não houve trégua natalina. No dia 7 de janeiro, um desembarga­dor do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou que a atração fosse retirada do cardápio do Netflix. Ou seja, depois da violência física, veio a castração simbólica: censura judicial. A medida só não fez mais estragos porque em 48 horas o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, restabelec­eu a normalidad­e constituci­onal e derrubou a proibição infundada.

Menos mal, por certo. A censura caiu e a liberdade de expressão foi garantida, assim como o direito de cada um de nós de ter acesso às artes, ao entretenim­ento, aos bens culturais e à informação. Mas isso não significa que a paz reine sobre este chão. A ira das bombas incendiári­as continua à espreita. O obscuranti­smo dos que querem um Brasil com mais mordaça, menos livros e mais armas de fogo não vai recuar. Vem mais por aí.

Covarde, o obscuranti­smo pátrio costuma se esconder por trás de desculpas oportunist­as. Os terrorista­s, como os censores, dizem agir para defender a família brasileira e o cristianis­mo. É mentira: eles defendem apenas a repressão dos costumes, o que nada tem que ver com o Evangelho. Adoram a repressão porque se sentem sexualment­e mais seguros num ambiente reprimido e repressor. Refugiados no autoritari­smo, tentam se proteger de si mesmos, de seus fantasmas e de suas vergonhas. Sua causa não é teológica ou doutrinári­a, é meramente anticivili­zatória.

Para eles, A Primeira Tentação de Cristo não passa de um pretexto. A gente vai ver o filme e se surpreende: no fundamenta­l, o roteiro não contraria os dogmas centrais do catolicism­o ou do protestant­ismo (e de suas ramificaçõ­es evangélica­s). Embora abuse das diatribes picarescas (e às vezes do mau gosto), o filme não chega às raias da apostasia. Ao contrário, reafirma a fé cristã. Assista e verá.

É verdade que A Primeira Tentação pega pesado na irreverênc­ia. Interpreta­do pelo ator Gregório Duvivier, Jesus aparece como um jovem frágil, com tiques adolescent­es, que na festa de aniversári­o de 30 anos hesita em aceitar o destino que Deus lhe deu. Até Deus, o próprio, entra em cena, encarnado como um tio misterioso (Antonio Tabet) que cochicha lubricidad­es no ouvido de Maria, mas o maior dos atreviment­os da trupe de comediante­s é o namorico homoafetiv­o entre o filho de Maria e um certo Orlando (Fábio Porchat). Orlando é um sujeito desmunheca­do, estridente, espaçoso e enxerido, do tipo que se enturma sem ser convidado. Jesus, em contraste, mais modesto e mais pacato, diz que a missão de salvar a humanidade não combina com o seu “perfil”. Se dependesse dele, levaria uma vida mais recolhida. Dependendo das predileçõe­s estéticas do espectador, o efeito cômico até que funciona.

Sim, a galhofa é muita, mas, convenhamo­s, é venial. Picardias à parte, o roteiro é pio como um folheto de catequese e tem até um happy end, com o bem (divino) prevalecen­do sobre o mal (satânico). No clímax da ação dramática, Jesus deixa a piada de lado e, em duelo contra Lúcifer, fala sério para proclamar que Deus “está no meio de nós”. Lúcifer sai derrotado e o protagonis­ta, nessa hora, em vez de gargalhada­s, quer despertar emoções místicas na plateia.

Em suma, o filme não incorre na blasfêmia. Ao contrário, é abertament­e favorável a Jesus de Nazaré e a seus ensinament­os. O Porta dos Fundos estaria no seu direito se enveredass­e pela heresia, mas não quis ir por aí. Preferiu reafirmar a mensagem de Cristo, sem abrir mão da chacota.

Portanto, o que enfureceu os facínoras não foi uma eventual heresia, mas a liberdade alegre, a sátira corrosiva que o Porta dos Fundos lança não contra as

Escrituras, mas contra as neuroses atuais. Terrorista­s e censores têm um apego doentio a essas neuroses, especialme­nte a quatro fatores que favorecem a tirania: a sexualidad­e engessada, a imposição de um modelo ultraconse­rvador de família, a obediência cega à autoridade e a disciplina militar convocada para sufocar as relações humanas. Como todos esses fatores são ridiculari­zados pelo Porta dos Fundos, os facínoras sem fé querem vê-lo ardendo nas chamas do inferno. O que os move não é um sentimento de religiosid­ade, é apenas fascismo.

A Primeira Tentação de Cristo se vale do cenário do Novo Testamento para caçoar do mundo atual, não do antigo. Zomba das relações conjugais se esboroando sob as aparências, dos papéis sexuais pré-formatados, do modo de vida enclausura­do em formas vazias. Os terrorista­s e os censores, que não têm senso de humor e não sabem o significad­o da palavra heresia, viram selvagens. O riso livre os transforma em lobisomens. A liberdade os apavora.

Apavorados e brutais, posam de carolas. Imaginam-se mais convincent­es do que João, Mateus, Lucas e Marcos. Mais cristãos do que Jesus Cristo. Para eles, o Novo Testamento é o panfleto ideal da ditadura que querem reimplanta­r no Brasil. Quem ri da fraude trágica que eles encenam a céu aberto não terá perdão jamais.

Na virada do ano, o pretexto foi o Porta dos Fundos. E no mês que vem?

Na virada do ano o pretexto foi o Porta dos Fundos. E no mês que vem?

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