O Estado de S. Paulo

A tensão social é tema de filme

‘Os Miseráveis’, de Ladj Ly, está na disputa pelo Oscar

- Luiz Carlos Merten

Na França, os policiais de ronda andam em trio, não em duplas como no Brasil. Isso explica a conformaçã­o no carro de Os Miseráveis, o longa francês do maliano Ladj Ly que estreia nesta quinta, 16, nos cinemas brasileiro­s. Desde o Festival de Cannes do ano passado, em que dividiu o prêmio do júri com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Les Misérables – título original – tem sido um dos expoentes da tendência que se pode definir como ‘revolta dos excluídos’. Foi indicado para o Globo de Ouro e concorre ao Oscar de melhor filme internacio­nal. Não vai ganhar, porque em todas essas disputas está trombando com Parasita, do sul-coreano Bong Joon-ho, que, no caso específico do prêmio da Academia de Hollywood, está indicado em seis categorias e concorre a melhor filme e melhor filme internacio­nal. Por conta dessas indicações, Parasita, por sinal, ampliou seu circuito e ganha mais salas – em São Paulo e no Brasil.

Em dezembro, vieram ao Brasil para apresentar o longa de Ly no Festival do Rio dois atores do filme, Alexis Manenti e Almamy Kanouté, o primeiro também corroteiri­sta, com o próprio diretor. Na origem do longa, está um curta também escrito por Manenti. Entre os dois filmes, há uma diferença e tanto. Ambos mostram o funcioname­nto da força policial pelo olhar de um novato na vizinhança. No curta, o policial que está chegando comete a infração que pode levar o mundo – aquele mundo – à explosão. No longa, é testemunha, e a questão é – como reagirá? Kanouté é negro, muçulmano. Faz o dono da mercearia que serve de palco para alguns confrontos. Num filme em que ninguém tem razão, seu personagem possui grande força e dignidade. “Foi um presente de Ladj. Ele próprio é negro e muçulmano, natural do Mali. Conhece o sentimento de não pertencime­nto que muitos de nós, senão todos, conhecemos na França”, diz Kanouté.

Dois policiais brancos, o novato e o veterano, e um negro. A conformaçã­o racial dentro do carro funciona como um microcosmo, e todo o filme possui essa dimensão. Do particular para o universal, e vice-versa. “A pobreza não tem cor nem nacionalid­ade, o abuso policial é uma realidade cotidiana nas sociedades baseadas na desigualda­de social. Na França, tem havido muitas críticas à conivência das autoridade­s com a repressão policial, embora setores mais à direita defendam os excessos em nome da segurança. Pelo que sei do Brasil, aqui é ainda pior”, diz Manenti. “Cheguei há dois dias e, por menos que entenda a língua, as imagens na TV e nos jornais dão conta de confrontos integração dos descendent­es de colonizado­s segue sendo um problema grave.”

Um dos episódios, e certamente o mais explosivo de Os Miseráveis, diz respeito ao sequestro de um filhote de leão. A garotada – e um garoto, em especial – se apossam do leãozinho. O dono do circo e seus seguranças reagem de forma brutal, ameaçam iniciar uma guerra. A norma, em Os Miseráveis, é o confronto, nunca a negociação. “Foi por isso que Ladj resolveu iniciar o filme com as imagens da confratern­ização da Copa do Mundo, com o Arco do Triunfo ao fundo. Aquele é um cenário turístico, há uma idealizaçã­o. O esporte reúne todo mundo, independen­temente de raça, condição social ou religião. Mas o congraçame­nto termina ali. Na sequência, começa o confronto. A cena não existia no roteiro. Foi acrescenta­da ao cabo de muita reflexão. Todo o processo do filme foi muito reflexivo para a equipe. Discutíamo­s cada cena, suas implicaçõe­s. Íamos consciente­s de cada intenção. Se o filme passa um sentimento de urgência, de tensão, de nervosismo, é graças à montagem. Participei da escrita e da interpreta­ção, mas sei que o filme toma forma na montagem”, diz Manenti.

E Kanouté – “Ladj e todos nós conhecemos aquela vizinhança. Era fundamenta­l que o filme passasse a verdade do lugar. A fala, a paisagem, o sentimento em Os Miseráveis, tudo é fruto da nossa vivência.” Os policiais, e o interpreta­do por Manenti – pintado como um responsáve­l pai de família –, são abusivos.

Outro garoto, não o que sequestra o filhote, possui um drone com o qual filma as meninas trocando de roupa pelas janelas dos apartament­os no prédio popular. A mesma câmera capta o abuso da polícia. O garoto do leão é gravemente atingido. Pode morrer. O trio divide-se, parte para o confronto interno. E agora o spoiler – toda a construção dramática de Os Miseráveis converge para o desfecho. Há uma explosão cênica, uma calmaria e, de novo, arma-se o confronto. O garoto mascarado, à maneira do Coringa, e o policial, ambos armados – bomba caseira contra revólver –, estão ali no caminho sem volta, prontos para explodir.

A beleza desse desfecho está na construção do olhar. Como o espectador recebe a cena. Uma escada. Quem está no topo, quem está abaixo. Manenti e Ladj Ly em nenhum momento criam ‘heróis’. O mundo é muito mais complexo que isso, mas o olhar do diretor rompe uma possível imparciali­dade e toma partido.

Como Manenti e Kanouté receberam a reação da plateia carioca a Os Miseráveis? “Em toda parte, e não apenas aqui, o olhar estrangeir­o tem correspond­ido à expectativ­a. As pessoas compreende­m que se trata de um recorte, mas identifica­m que não é um problema localizado, somente daquela comunidade. Ocorre em toda parte. O mundo está explodindo. Manifestaç­ões em toda parte. Me perguntam se o filme é pessimista? Eu creio que é otimista. Só a reflexão, e a mudança dessas estruturas, podem nos salvar.”

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JOEL SAGET/AFP O diretor Ladj Ly. Na disputa pelo Oscar de melhor filme internacio­nal
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DIAMOND FILMS Cena do filme. A norma, em ‘Os Miseráveis’, é o confronto, nunca a negociação

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