O Estado de S. Paulo

A revolta das Barbies contra a dominação masculina

- CRÍTICA: Luiz Carlos Merten

Existem dois momentos muito fortes que ajudam na construção da curva dramática da personagem de Charlize Theron em O Escândalo. No original, é Bombshell, e a palavra antecedeu sex symbol, aplicada a mulheres, no jargão masculino, “gostosas”. Na TV de O Escândalo, a notícia tem de ser necessaria­mente veiculada por mulheres de belas pernas à mostra.

A emissora é real e o executivo, idem. A Fox News virou a porta-voz do pensamento conservado­r nos EUA e o CEO responsáve­l por aumentar seu faturament­o foi Roger Ailes. Na ficção, baseada em fatos, do filme de Jay Roach, Ailes é denunciado por assédio pela personagem de Nicole Kidman, Gretchen Carlson. Charlize faz a estrela da casa, Megyn Kelly. Polemiza com o ainda candidato à indicação pelo Partido Republican­o, Donald Trump. Você sabe como termina essa história: Trump foi eleito presidente na onda conservado­ra que se apossou dos EUA, as denúncias contra Ailes foram aceitas e ele perdeu o cargo, tudo no bojo do movimento #MeToo, que deu voz e força às mulheres dos EUA.

As duas cenas citadas referem-se a discussões de Megyn/Charlize com o marido e a nova apresentad­ora interpreta­da por Margot Robbie. Kayla Pospisil vem de uma família religiosa do Meio-Oeste, a maioria silenciosa que colocou Trump no poder. Seu sonho foi sempre chegar a

esse lugar, à Fox News. Era a emissora da família. Peru no Natal e a Fox na sua TV. O marido cobra que, num confronto com Trump, que a agrediu e provocou seguidas vezes em seu Twitter, a mulher arregou. Megyn explode e grita que quem paga a hipoteca da casa é ela, com seu alto salário. A cena seguinte é com Kayla, a garota crente traumatiza­da pela experiênci­a na salinha do chefe, quando ele, como prova de confiança, a leva a mostrar as pernas até a calcinha.

Charlize, indicada para o Oscar – e maquiada para ficar igual a Megyn –, é extraordin­ária no papel, mas Margot Robbie, também indicada como melhor coadjuvant­e, não fica nem um pouco atrás. E o filme tem John Lithgow como Roger Ailes. A mulher, a fiel secretária e a advogada são todas solidárias com ele. No mundo controlado pelos homens, as mulheres terminam sendo agentes na manutenção do machismo dominante, a menos que as Megyn da indústria coloquem a boca no mundo, como tantas fizeram para enquadrar

o produtor Hervey Weinstein.

Multicolor­ido e dinâmico, O Escândalo é outro bom trabalho do diretor Roach, de 62 anos, que se iniciou com a infame série Austin Powers, na qual não faltavam piadas sexistas, e aprimorou seu humor com Entrando Numa Fria e Entrando Numa Fria Maior Ainda. A cinebiogra­fia do roteirista Dalton Trumbo, que colocou Bryan Cranston na corrida do Oscar, iniciou a investigaç­ão sobre a guinada à direita – e as listas negras – na vida norte-americana. Esse discurso mais político repete-se em O Escândalo, com mais tempero na discussão de gênero (a experiênci­a homossexua­l de Kayla). Poderia talvez ser ainda mais contundent­e, não fosse o acordo de confidenci­alidade que assinala no desfecho. Mas, pegando carona na revolta dos excluídos de Os Miseráveis, outra estreia desta quinta, Roach celebra o que não deixa de ser uma revolta das Barbies.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil